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domingo, 26 de janeiro de 2014

No divã para pensar em 1914 e em 1974

Helmut Kohl diz sempre que “a Europa continua a ser uma questão de guerra e paz”. E tem razão.

26/01/2014 – 14:42



A aproximação do centenário do início da I Guerra Mundial já cristalizou uma ideia: é preciso olhar para a Europa de 1914 para reflectir sobre a Europa de 2014 e decidir bem — pelo menos melhor.

Hoje temos uma Europa sem união, sem estratégia e sem solidariedade, que encolhe os ombros perante o nacionalismo crescente, é complacente face ao extremismo descarado e ignora com cortesia o engrossar do cortejo de deputados radicais, anti-imigração e anti-Europa nos parlamentos nacionais.

Em 1994, ainda próximos dos acontecimentos, comemorámos o 25 de Abril muito colados à narrativa dos factos — quem estava onde, a que horas e a fazer o quê. Hoje, quando pensamos nos 40 anos da democracia portuguesa, damos os factos da operação como adquiridos (embora haja ainda uma ou duas perguntas “operacionais” por responder) e reflectimos sobre o país que entretanto foi construído: somos o país das cunhas e das “jotas políticas”, mas onde os bebés já não morrem à taxa de 60 por mil nascimentos (a taxa desceu para 3); o país com liberdade de expressão e de imprensa, mas sem transparência em relação aos accionistas de alguns jornais; o país que enterrou o conceito de “crime político”, mas onde a lentidão da justiça não tem fim à vista; o país que evoluiu de um ensino básico insipiente e aplicado graças à intervenção da GNR - que ia buscar crianças a casa para as levar à escola — para uma progressiva aproximação das médias internacionais, mas que acaba de cortar 40% das bolsas de doutoramento e 65% de pós-doutoramento, quando quase metade desse financiamento vem dos fundos comunitários.

Com a I Guerra Mundial passa-se o mesmo. Se há umas décadas nos dávamos por satisfeitos com o relembrar das manobras militares, os bastidores da diplomacia e a análise sobre vencidos e vencedores, hoje estamos em processo de auto-análise colectiva. A Europa, este Verão, vai deitar-se num divã e olhar para si própria. O exercício, de resto, já começou.

Portugal apresentou a sua candidatura à CEE logo em 1977 — três anos depois do 25 de Abril. Mário Soares teve a sabedoria de identificar o país com o ideal europeu e as preocupações dos seus fundadores, homens que tinham visto a Europa ser devastada por duas guerras mundiais no espaço de 20 anos e que acreditaram que sem uma união formal dos países europeus o continente não teria paz.


Há dois anos, Helmut Kohl — que fez a reunificação alemã e defendeu o euro como “instrumento de paz” essencial para evitar a guerra — disse que, 70 anos depois do fim da II Guerra Mundial, “a Europa continua a ser uma questão de guerra e paz”. É crucial relembrar o timing das suas palavras. O velho chanceler alemão, que Bill Clinton disse um dia ser o mais importante estadista europeu vivo, falou de guerra e paz dias depois de o seu partido, a CDU de Angela Merkel, ter hesitado apoiar a Grécia e um influente ministro alemão ter sugerido que a Grécia deveria sair do euro. Em 2012 Kohl repetiu o que dissera 20 anos antes, quando avisou sobre os perigos de uma Europa fraca e não solidária. Hoje não temos a rivalidade de impérios, nem a excessiva militarização, nem a crença de que as guerras podem ser breves, nem sociedades pouco democráticas que definiam a Europa do início do século. Mas as ilusões de grandeza, a irracionalidade política e diplomática, os erros de percepção e análise e a desconfiança sobre o outro ainda existe na Europa. É tempo de rever as lições aprendidas.

Em Outubro, vá ao Parlamento mostrar as recordações do avô que combateu na primeira guerra

Soldado português numa trincheira em França, num posto telefónico na 1.a linha DR

LUÍS MIGUEL QUEIRÓS (http:// www.publico.pt/autor/luis-miguel-queiros-   26/01/2014-11:53

Portugueses desafiados a mostrar no Parlamento memorabilia de familiares envolvidos na guerra.

Nos dias 16,17 e 18 de Outubro, os portugueses que guardam memórias de parentes que combateram na I Guerra Mundial serão convidados a ir à Assembleia da República mostrar essas relíquias familiares - postais, cartas, fotografias, medalhas, capacetes, mapas, diários, fardas, objectos do quotidiano – e contar as historias que lhe estão associadas. Com organização do Instituto de História Contemporânea (IHC) da faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova em conjunto com o Parlamento, esta espécie de collection day, no qual irão ainda colaborar várias outras instituições, promete ser um dos acontecimentos mais mediáticos deste primeiro ano de evocacão da guerra de 1014-1918.
Teremos gente preparada para entrevistar as pessoas e recolher as suas memórias”, explica a presidente do IHC, a historiadora Fernanda Rollo, e os objectos serão reproduzidos, ficando as pessoas com os originais, a menos que queiram doá-los.

Esta e outras iniciativas da sociedade civil irão complementar, para dizer o mínimo, o programa oficial que está a ser desenhado pela Comissão Coordenadora das Evocações do Centenário da I Guerra Mundial, nomeada em 2012 pelo ministro da Defesa, José Pedro Aguiar Branco, e presidida pelo tenente general Mário de Oliveira Cardoso. A designação “evocações” não foi escolhida por acaso: “Não queremos comemorar nem celebrar nada, o que procuramos é evocar uma memória colectiva e valorizar o sacrifício dos soldados portugueses”, diz o presidente da Comissão, que integra representantes dos diferentes ramos das Forças Armadas, e ainda da Liga dos Combatentes e da Comissão Portuguesa de História Militar.

Alguns dos países que integraram as potências vitoriosas em 1918, como a França e a Inglaterra, estão a investir fortemente nestas comemorações, tanto ao nível simbólico como financeiro. Não é manifestamente o caso de Portugal, quer pelas limitações que a crise impõe, quer talvez pela consciência de que, mesmo estando do lado dos vencedores, o país teve muito pouco a ganhar com este conflito, que mobilizou mais de cem mil soldados portugueses, dos quais 7760 perderam a vida e cerca de 16 mil sofreram ferimentos, e ainda outros foram feitos prisioneiros ou desapareceram.

Oliveira Cardoso diz ter já um orçamento indicativo para os cinco anos que durará este programa, até 2018, e um orçamento para este ano de 2014 “adequado às actividades” programadas, mas prefere não adiantar números. As iniciativas previstas incluem alguns  momentos mais institucionais, como as comemorações do dia do combatente, a 9 de Abril, no mosteiro da Batalha, ou a homenagem nacional aos mortos da guerra, a 18 de Outubro, que incluirá o descerramento simultâneo de placas alusivas em capitais de distrito, ou ainda a celebração do armistício, que a Liga dos Combatentes organizará em Novembro no Forte do Bom Sucesso, em Belém.

Mas o grande objectivo da comissão, afirma o seu presidente, é estudar e divulgar a presença portuguesa na guerra, quer através de conferências e colóquios, quer apoiando projectos de investigação. Oliveira Cardoso sublinha em especial a importância da pouco estudada primeira fase da participação de Portugal na guerra, com o envio para África, logo em 1914, de tropas encarregadas de defender as colónias ameaçadas pela Alemanha, em particular Moçambique. “Houve mais mortos em África do que na Flandres”, nota o militar.

Além de iniciativas mais circunscritas ao mundo militar, divulgadas no portal 
que em breve disporá de um memorial virtual com os soldados portugueses mortos no conflito —, “a comissão tem já previsto, para o início de Setembro, um colóquio sobre o papel desempenhado na guerra de 1914-18 pelas pequenas e médias potências, co-organizado pelo Instituto de Defesa Nacional, pelo Instituto de Ciências Sociais e pelo IHC.

Oliveira Cardoso gostaria também de promover em 2016, ano em que se cumpre o centenário da declaração de guerra da Alemanha a Portugal, “um seminário que contasse a história da guerra à luz dos dias de hoje”, um projecto que está ainda a “debater com especialistas”.

Certo é que algumas das ideias mais fortes desta comissão só deverão ocorrer a partir de 2016: uma “grande exposição”, a construção de uma réplica do avião Spad VII, tripulado por pilotos portugueses enquadrados em esquadrilhas francesas, ou ainda o levantamento dos navios afundados na costa algarvia, em 1917, pelo submarino alemão U35. Estão já também a ser feitos contactos com a RTP para a realização de uma série televisiva que evoque a participação de Portugal na guerra e as circunstâncias em que esta se deu.

Batalha do Somme com orquestra
Para este ano de 2014, o programa oficial até agora anunciado é bastante modesto, mas será enriquecido por iniciativas de várias instituições. Já no final deste mês, no dia 30, o Instituto Francês promove em Lisboa a “conferência cruzada” Uma História Mundial da Grande Guerra, com o historiador e ex- ministro Nuno Severiano Teixeira e o especialista francês Nicolas Offenstadt, exibindo no dia seguinte o documentário Os Portugueses nas Trincheiras, de António Louçã e Sofia Leite.
Mas os mais importantes contributos até agora anunciados vêm do IHC, que está a organizar uma série de colóquios que decorrerão ao longo do ano, a começar por Resisting War in the 20th Century, entre 27 de Fevereiro e 1 de Março, e A Europa Entre Guerras (1919-1939), a realizar nos dias 3 e 4 de Abril. Em Julho, será a vez de um colóquio sobre África e a primeira guerra, e no final de Novembro realizar-se-á um encontro dedicado ao tema dos prisioneiros de guerra no século XX. E na primeira metade de Outubro, a preceder o collection day no Parlamento, haverá um outro colóquio, cujo tema e datas ainda não foram anunciados.

Os projectos para evocar a guerra que envolvem a equipa de investigadores do IHC estão centralizados no portal Portugal 1914 www.portugal1914.org/ , desenvolvido com diversos parceiros, nacionais e internacionais, e onde já é possível consultar uma detalhada cronologia da participação portuguesa na guerra, ou ler biografias de soldados e de outros intervenientes, entre muitos outros materiais.

O portal inclui um apelo para que quem conserve memórias de familiares envolvidos na guerra permita que essas peças sejam digitalizadas e estudadas. E a julgar pelas muitas respostas já obtidas, Fernanda Rollo está convencida que a operação Collection no Parlamento vai ter uma grande adesão. Para já, os materiais recebidos estão a ser reproduzidos e enviados para a Europeana 14-1918, um projecto que está a reunir este mesmo tipo de materiais à escala europeia.

Outros projectos já confirmados, mas ainda sem data marcada, são a edição do dicionário Portugal e a Primeira Guerra, a sair numa edição conjunta da Temas & Debates e do Círculo de Leitores, e a exibição de um filme da época sobre a batalha do Somme, uma das mais longas e sangrentas da primeira guerra. “Estamos a tentar fazê-la ao ar livre e com acompanhamento ao vivo de uma orquestra”, diz Rollo.


Juntamente com Filipe Ribeiro de Meneses, biógrafo de Salazar e professor na universidade de Maynooth, na Irlanda, e da historiadora Ana Paula Pires, sua colega na Universidade Nova e especialista na participação portuguesa na I Guerra Mundial, Fernanda Rollo é ainda responsável pela secção portuguesa do projecto 1914-1918 online - International Encyclopedia ofthe First World War, uma obra de referência virtual sobre a primeira guerra.

Ler a História: erros, horrores, alternativas


MIGUEL BANDEIRA JERÓNIMO   26/01/2014 – 11:53

Parece inacreditável, mas é verdade. Ainda há muitos livros a serem publicados sobre a I Guerra Mundial.
Muitos deles com uma qualidade excepcional, não apenas por reorganizarem ou sintetizarem, de modo mais claro ou inovador, a vasta informação já existente sobre este momento central da história contemporânea, mas também por oferecerem interpretações originais. Apresentamos uma lista breve sobre os livros recentes a ler acerca deste marcante acontecimento, cuja história e legados nos ajudam a interrogar os nossos tempos.

É obrigatório começar por destacar os três volumes Cambridge History ofthe First World War (2013), coordenados por um dos principais especialistas do tema, o excelente historiador Jay Winter (universidade de Yale). Os três volumes oferecem uma erudita fusão entre síntese e novidade. Estamos perante o mais completo compêndio sobre o que interessa saber sobre a I Guerra Mundial: causas e origens, actores e consequências. De facto, nos seus 73 capítulos (sem contar com as introduções e os exaustivos ensaios bibliográficos) deparamo-nos com um sem-número de perspectivas críticas actualizadas e com uma série de novas interrogações e renovadas interpretações. A diversidade de temas, a pluralidade e a profundidade das análises, e a solidez das interpretações são impressionantes.

O primeiro volume, intitulado Global War, parte da premissa de que uma “guerra global requer uma história global”. O que é cumprido com rigor e pormenor. O segundo volume, intitulado The State, centra-se na análise do impacto que o conflito teve nas instituições do Estado e na sua relação com a sociedade civil num contexto de sucessivos estados de excepção. O terceiro volume, intitulado Civil Society, oferece um riquíssimo conjunto de textos que ilumina o papel de várias instituições e práticas sociais no conflito mundial. Esta obra colectiva perdurará por certo como a obra de referência sobre este tema.

Igualmente rica é a Encyclopédie de la Grande Guerre, 1914-1918. Histoire et Culture (2004), publicada de novo, numa versão revista e aumentada, sob coordenação de Stéphane Audoin-Rouzeau e Jean-Jacques Becker. Trata-se de um instrumento de trabalho indispensável, com dezenas de textos escritos por especialistas de renome internacional. Temas como os do uso de armas químicas, o do uso de contingentes militares recrutados no interior dos impérios coloniais europeus, o das múltiplas formas de recusa de participação no conflito, o do papel dos intelectuais, entre muitos outros, são explorados com rigor e clareza.

O magnífico livro de Christopher Clark The Sleepwalkers: How Europe Went to War in 1914  (2013) merece uma recomendação entusiástica.
Informado, original e polémico, The Sleepwalkers consegue equilibrar uma lúcida análise do conjunto de causas estruturais que explicam a emergência do conflito — por exemplo, o sistema de alianças internacionais, as rivalidades imperiais, a excessiva militarização ou a natureza pouco democrática das sociedades envolvidas — com a difícil demonstração da irracionalidade político-diplomática predominante. Mobilizando um sólido conjunto de argumentos que devia ser obrigatoriamente lido por políticos, militares e “estrategos” de serviço, Clark mostra o papel central que as ilusões de grandeza, os erros de percepção e interpretação (baseados em escassa, apressada e mal apurada informação), as suposições infundadas (que muito ficam a dever à malfadada centralidade dos “especialistas” em cenários), os preconceitos e os estereótipos sobre os inimigos (em muito devedores dos mais ignaros racismo e xenofobia) ou a cultura do medo desempenharam. O sonambulismo tem custos imprevisíveis, e inaceitáveis. Como em muitos momentos históricos marcados pela aceitação da desumanidade — aprender a aceitar o desumano ficou mais fácil para muitos a partir desta altura —, é crucial interrogar a responsabilidade das “elites” envolvidas.

Uma reflexão erudita sobre o papel das elites políticas europeias, sobretudo sobre os seus processos de tomada de decisão, é precisamente o que nos oferece Margaret MacMillan, no esplêndido The War That Ended Peace: The Road to 1914 (2013), que deve ser lido em conjunto com o seu Paris 1919: SixMonths That Changed the World (2003). A combinação de uma certa cultura de expectativa positiva face à guerra, de uma paranóia generalizada — sobre o outro, sobre a “degeneração” social e societal —, de uma megalomania institucionalizada (ainda por cima em sociedades crescentemente militarizadas), de um jingoísmo popular e ainda de um punhado de julgamentos e decisões mais do que questionáveis foi fatal. Uma coisa fica clara para MacMillan e para os que a lêem: a violência e a mortandade eram evitáveis, existiram responsáveis concretos, mas não culpados únicos.

Para os cultores da história contrafactual, que tanto tem de estimulante exercício intelectual como de perigoso instrumento de revisionismo histórico, recomendamos o livro de Richard Ned Lebow, Archduke Franz Ferdinand Lives!: A World without World WarI (2014). Lebow oferece-nos vários mundos plausíveis partindo da supressão de um único dado histórico: o assassinato do arquiduque Francisco Fernando em Sarajevo, em 1914. Que mudanças significativas seriam plausíveis nas trajectórias biográficas de inúmeras personalidades da época e nos desenvolvimentos geopolíticos globais? Por exemplo, como pensar a inexistência de um Estado de Israel face à inexistência do Holocausto, face à inexistência do nacional-socialismo na Alemanha? The Plot Against America, de Philip Roth, talvez seja mais entusiasmante, mas o livro de Lebow constitui uma história alternativa que demonstra como acontecimentos (e pequenas irresponsabilidades) podem provocar consequências tão nefastas e duradouras como as que a I Guerra Mundial desencadeou.


Uma última nota de leitura sobre um livro que só será publicado em meados deste ano, mas que promete transformar-se num notável exemplo do modo como se pode repensar a história da I Guerra: Empires at War, 1911-1923, coordenado por Erez Maneia e Robert Gerwarth. O objectivo é duplo: primeiro, redefinir a cronologia do conflito, da invasão italiana da Líbia até aos inúmeros e violentos conflitos que se prolongaram até 1923, na sequência da desagregação da Rússia Czarista e dos Impérios Austro-húngaro e Otomano; segundo, demonstrar que se tratou de um antagonismo global entre Estados-império e não entre Estados-nação. Pelo conjunto de contribuições a que já tivemos acesso, podemos garantir que esta obra rapidamente se tornará numa referência obrigatória para todos os que se interessam pelo período histórico. Aguardemos com expectativa a sua publicação. Assim como a de números outros livros. Que decerto inundarão as livrarias no decurso de 2014.

Que podemos aprender hoje com a Europa de 1914?


O centenário da Grande Guerra de 1914-18 suscita uma reflexão sobre os riscos do mundo em que vivemos. Historiadores, analistas e jornalistas fazem paralelos entre 1914 e 2014. Que lições nos deixa a tragédia fundadora do século XX?

JORGE ALMEIDA FERNANDES (http://www.publico.pt/autor/jorge-alivibda-fernandes) 26/01/2014 - 09:06

Quando a Europa comemorou em 1994 os 80 anos da eclosão da Grande Guerra de 1914-18, fê-lo num estado de espírito muito particular — o da despedida do trágico século XX. Com o fim da União Soviética, encerrava-se uma era. A construção europeia acelerava-se e a UE preparava a integração do Leste, reunificando o Continente. Dominava a pax americana. Fukuyama publicava O Fim da História. Admitia-se uma “globalização feliz”. Apenas o regresso da palavra Sarajevo e a irrupção dos nacionalismos trazia alguma perturbação. Mas, sobretudo, tiravam-se as lições do “suicídio” de 1914 este facto já muito distante.

O espírito do tempo mudou. “Um espectro assombra o mundo: 1914” – Harold James, professor em Princetown, na International Affairs, da Chatham House de Londres. “A aproximação do centenário da eclosão da I Guerra Mundial faz evocar o modo como a instabilidade produzida por mudanças na balança do poder num mundo integrado e globalizado pode produzir cataclismos.”

Em Janeiro de 2013, Jean-Claude Juncker, então presidente do Eurogrupo e primeiro-ministro luxemburguês, convidou os jornalistas a anotarem os paralelos com 1913, “o último ano da paz na Europa”. Surgem estranhos títulos nos jornais e revistas Europeus, americanos e asiáticos: “1914-2014, o mesmo combate?”; “Será 2014 uma repetição de 1914?”; “Tempo de pensar mais em Sarajevo e menos em Munique”; “A China não deve imitar os erros do Kaiser”; “Ouvindo os ecos de 1914 em 2014”; “1914 e a Alemanha de hoje?”; ou (num jornal chinês) “Deixem de comparar a China com a Alemanha de 1914”.

No 1o de Janeiro, o Financial Times fez de 1914 o tema do seu editorial: “Reflexões sobre a Grande Guerra — o mundo pode ainda tirar as liçoes da catástrofe de 1914.” O diário da City pensa que “o mundo de 2014 não está à beira de um tal desastre histórico”. Mas o centenário é uma oportunidade para estudar algumas lições: “É uma loucura ir para a guerra na crença de que será curta e com consequências controláveis. Em 1914, alguns políticos e generais europeus, cuja visão fora moldada pelas guerras que unificaram a Alemanha e a Itália no século anterior, incorreram nesta ilusão. O mesmo fizeram Washington e Londres quando invadiram o Iraque em 2003. Quão errados estavam estes chefes de guerra em ambas as ocasiões.”
Por trás desta reflexão e destes títulos estão a tensão no Mar da China Oriental, os focos de conflito no Médio Oriente e também uma Europa “abalada pela crise e pela dúvida”

A guerra civil europeia
É inevitável uma curta passagem pela Grande Guerra. “Se não podemos conceber o século XIX sem a Revolução Francesa, não podemos pensar as tragédias do século XX sem a Grande Guerra”, afirmou  o historiador francês François Furet. Sem ela, o fascismo, o comunismo, o nazismo e a II Guerra Mundial não seriam concebíveis. Foi uma “guerra civil europeia”, antes de ser mundial, “em que milhões de homens foram lançados numa guerra total e arrancados às suas solidariedades tradicionais, encontrando-se numa posição de absoluta subordinação ao Estado e ao interesse nacional. Numerosas camadas da população aprenderam a política através da guerra. Foi a entrada patológica (da Europa) na democracia” (Furet). “Foi a catástrofe fundadora do século” (George Kennan).

Envolveu um grau de violência até então inimaginável, uma “brutalização” das sociedades, culminando numa perda dos valores — e o da vida em primeiro lugar. “A banalização da violência continua em nós e penso que podemos ligar à I Guerra Mundial, diz o historiador americano Jay Winter, especialista da Grande Guerra.

Porquê, porquê, porquê?
Quatro impérios desapareceram na tormenta: o alemão, o austro-húngaro, o otomano e o russo — que deu lugar à União Soviética. O moderno Médio Oriente e os seus conflitos nasceram desta guerra.

Fez 19 milhões de mortos, entre eles nove milhões de soldados. Há um termo de comparação mais eloquente. Só na Batalha do Marne, de 7 a 12 de Setembro de 1941, a França perdeu 80 mil homens e a Alemanha talvez outros tantos. Em toda a Guerra do Vietname, morreram 47 mil militares americanos.
Europa era o centro económico, político e cultural do mundo, detentora de vastos impérios coloniais. Os EUA ou o Japão eram potências emergentes. Nenhum europeu imaginava a perda do estatuto central da Europa durante muitas gerações.

Interroga-se Jay Winter: “1918 já está muito distante de nós mas é ainda um puzzle. Foi para quê? Porquê? Porquê o banho de sangue? Porquê a carnificina? Esta pergunta é, para mim, a questão chave de todo o século XX. Porquê a violência? Porquê a crueldade?”

Na França e na Alemanha os soldados partiram para a guerra como para um piquenique, saudados nas ruas por multidões patrióticas. Esperavam passar o Natal em casa.

Clark e MacMillan
O centenário suscitou uma imensa produção historiográfica. Mas dois historiadores têm um papel relevante no novo olhar sobre “a actualidade de 1914”. O australiano Christopher Clark, professor em Cambridge, publicou em 2012 um livro intitulado The Sleepwalkers — How Europe Went to War in 1914. Os “sonâmbulos” são os políticos e militares que se lançaram na guerra. No ano passado, a canadiana Margaret MacMillan, professora em Oxford e Toronto, publicou um livro sobre o processo que levou à “guerra que pôs fim à paz” — The War that Ended Peace: The Road to 1914.

Os dois livros têm muito em comum. 0 objectivo não é procurar o “culpado” como num romance policial. O que mais interessa aos dois autores é o modo como os europeus avançaram para a catástrofe. Concordam com Churchill: “Nenhum episódio da I Guerra Mundial tem um interesse comparável com o seu começo.” É esta abordagem — a da engrenagem da guerra — que os torna politicamente “actuais”, suscitando um debate não apenas na imprensa mas em think tanks de política internacional, da Europa à Ásia.

O título de Clark explica-se em poucas palavras: “Os protagonistas de 1914 eram sonâmbulos, aparentemente vigis mas incapazes de ver, atormentados pelos seus pesadelos mas cegos perante a realidade do horror que estavam prestes a lançar no mundo.” Estuda o quadro político que precede a guerra, o encadeado de pequenos e grandes episódios que desestabilizam a ordem internacional e, sobretudo, as percepções erradas dos adversários, de parte a parte, numa engrenagem que leva à guerra a partir de um “detonador geopolítico ao longo da fronteira austro-sérvia”.

No fim da guerra, os vencedores designaram os vencidos como “culpados”. Alguns protagonistas lembraram mais tarde a inconsciência da época, como Lloyd George, primeiro-ministro britânico a partir de 1916: “As nações escorregaram para o caldeirão fervente da guerra sem o mínimo traço de apreensão ou perturbação.”

MacMillan (bisneta de Lloyd George) centra-se no encadeamento de factos que levou à tragédia: “Afinal de contas, a questão mais interessante é: como foi que a Europa atingiu, no Verão de 1914, o ponto em que a guerra se tornou mais provável (...) e como falhou a paz.” Também ela fala nos equívocos dos protagonistas, nos múltiplos erros de percepção, sobre as intenções dos adversários ou a avaliação das suas fraquezas e forças, na vontade de domínio ou nos seus fantasmas: o medo da Alemanha, que teme ser cercada pela Rússia e pela França; ou o temor britânico de que o crescente poderio da marinha alemã pusesse em causa a sua hegemonia nos mares, ameaçando o império.

Do Mar da China ao euro
Tudo isto são temas que nos são familiares no mundo do século XXI. No livro Da China (2011), Henry Kissinger dedica o capítulo de conclusão — “A História repete-se?” — à comparação entre as relações sino-americanas de hoje e a rivalidade anglo-alemã na véspera de 1914. “Um aspecto da tensão estratégica na actual situação mundial reside no medo chinês de que os Estados Unidos estejam a procurar conter a China — que tem paralelo na preocupação americana de que a China esteja a procurar expulsar da Ásia os Estados Unidos.”

Muitos temem a repetição de um “detonador geopolítico”, de uma nova Sarajevo, desta vez no Mar da China Oriental, combinando o contencioso sino-japonês, o choque dos dois nacionalismos e a rivalidade sino-americana. Depois do fim da ordem bipolar da Guerra Fria e do breve “momento unipolar” americano, emergiu “um sistema crescentemente multipolar, opaco, imprevisível. Como em 1914, uma potência emergente opõe-se a uma potência cansada — mas não necessariamente em declínio”, escreve Clark num artigo publicado há dias nos jornais europeus.

Curiosamente, Clark projectou a sua análise de 1914 sobre a crise do euro de 2010-11, quando estava a terminar o livro. “Os líderes da zona euro, como os de 1914, tinham consciência da possibilidade de um desfecho de consequências catastróficas” — o fim da moeda. Mas o medo da catástrofe não foi bastante para os levar a posição consensual e a colocar os interesses comuns acima dos particulares. Também na Europa de hoje haveria alguns “sonâmbulos”.

Analogias e lições
O South China Moming Post, de Hong Kong, adverte contra as analogias: “A ascensão da China moderna cedo foi comparada com a da Alemanha de Guilherme II. Mas tal ‘aprendizagem’ com a História pode ser mais enganadora do que útil. Os que tiram lições erradas da História estão a preparar-se para cometer erros ainda maiores”.

Também o analista americano Joseph S. Nye receia que as analogias com 1914 criem a ilusão de “inevitabilidade” e reforcem a tese de que “a ascensão do poderio da China não se poderá fazer pacificamente” (John Mearsheimer). Contesta alguns paralelos de MacMillan: “O mundo de hoje é diferente do de 1914, sobretudo por causa da arma nuclear. Os dirigentes têm uma ideia do que pareceria o mundo depois de um conflito nuclear.” Se o Kaiser ou o Czar imaginassem o que ia acontecer aos seus impérios teriam sido mais prudentes.

Clark tem outro entendimento das lições da História. “A China de hoje é o equivalente da Alemanha imperial de 1914? Se é o caso, que lições devemos tirar? Se somos da opinião de que a agressão alemã foi a causa principal da I Guerra Mundial, conclui-se que os EUA devem adoptar uma linha dura contra as actuais manobras chinesas. Mas, se considerarmos, como é o meu caso, que a guerra de 14-18 foi consequência da interacção entre várias potências, todas dispostas a recorrer à violência para defenderem os seus interesses, é preciso deduzir que devemos encontrar melhores meios de integrar as potências emergentes no sistema internacional.”


Em geral, os homens aprendem pouco com a História. Mesmo assim, 1914 ajuda a pensar 2014. “Penso que não podemos tirar lições claras da História. Mas podemos aprender a afastar algumas possibilidades perigosas”, diz MacMillan. Deixa um conselho mínimo: “Nunca devemos tomar a paz como garantida nem acreditar que somos demasiado civilizados para guerrear. Os europeus cometeram este erro em 1914.”

O calendário das comemorações

Destaques dos programas de comemoração do centenário da Primeira Guerra Mundial.

PÚBLICO 26/01/2014- 11:49






Sarajevo
Em Junho, haverá uma semana de grandes manifestações culturais, “Sarajevo no Coração da Europa”. Nessa altura será projectado o filme “Les ponts de Serajevo”, composto por 13 curtas-metragens, sobre a cidade e o seu papel na história na história europeia no último século. Entre os realizadores participantes encontra-se a portuguesa Teresa Villaverde e Jean-Luc Godard.
28 Junho – A Orquestra Filarmónica de Viena marca o dia do centenário do assassínio do arquiduque Francisco Fernando com um concerto em Serajevo.
19-21 Junho - Conferência “A Posição da Primeira Guerra na História da Europa”, com historiadores de 28 países. Sérvia não vai.

França
Em França há uma avalanche de iniciativas para assinalar os 100 anos da Grande Guerra, reunidas no site
14 Julho - Soldados de todas as nações beligerantes na I Guerra foram convidados a desfilar na parada do Dia da Bastilha.
Memórias da geração da Primeira Guerra, como diários de soldados e outros documentos, estão a ser recolhidos e digitalizados, para serem disponibilizados online.
3 Agosto - Os Presidentes de França, François Hollande, e de Alemanha, Joachim Gauck, encontram- se no cemitério de Hartmannswillerkopf na Alsácia

Alemanha
23 Agosto - Será realizado um jogo de futebol entre equipas das cidades geminadas de Newark, em Inglaterra, e Emmendingen, na Alemanha, para recordar a trégua de Natal de 1914, não declarada mas posta em prática pelos soldados ao longo de toda a frente Oeste, em que os combatentes jogaram à bola e conviveram.

Bélgica
4 Agosto - Mais de 50 líderes mundiais foram convidados pelo rei dos belgas, Philippe, para uma cerimónia na fortaleza de Liège que assinala o dia em que foi morto o primeiro soldado na invasão da Bélgica pela Alemanha.
O programa de comemorações belga está muito dividido consoante as regiões linguísticas, mas o site
reúne os eventos a nível nacional. Há uma candidatura a classificação como Património Mundial da UNESCO dos campos de batalha da Flandres.
8 Outubro - Será apresentada publicamente em Bruxelas, a Enciclopédia 1914-1918 Online. Coordenada por cientistas da Universidade Livre de Berlim, é o maior projecto de investigação internacional sobre a I Guerra Mundial, com participação portuguesa.

Reino Unido
4 Agosto - A Rainha Isabel II recebe os líderes da Commonwealth na catedral de Glasgow. É neste dia, em que há 100 anos o Reino Unido fez a declaração de guerra, que arranca o programa de quatro anos de comemorações. A descobrir a partir do site
Foram digitalizados e colocados online 1,5 milhões de páginas de diários de soldados que estiveram na frente, num projecto de historiografia participativa, em que qualquer um pode ajudar a classificar os documentos. Ver

Quando a memória é ela própria uma guerra

Soldado de Malta perfilado perante um memorial da I Guerra Mundial DARRIN ZAMMITLUPI/REUTERS

CLARA BARATA (http:// www.publico.pt/autor/clara-barata) 26/01/2014 - 11:48

É pacífico comemorar o centenário do primeiro conflito que se estendeu a todo o mundo? A prática mostra que não. Nem sequer a narrativa das vítimas pode ser dada como adquirida.

A memória da guerra pode ser quase tão conflituosa como a própria guerra, mesmo passados 100 anos.
Como recordar o centenário da I Guerra Mundial, que em França, nos longos quatro anos de um interminável inferno de lama e máquinas de combate que ceifaram a vida a perto de 1,5 milhões de soldados, era apelidada como “a última das últimas”?
Cada país beligerante olha para trás com uma interpretação diferente, e não imune a manipulações o diferente, e não imune a manipulações nacionalistas que continuam actuais e se reflectem nas comemorações do centenário.

Hoje já não há sobreviventes dos mais de 65 milhões, em todos os continentes, mobilizados para combater num conflito que os generais pensaram que ia decorrer com regras do século XIX mas se travou com armas do século XX. Na verdade, o último veterano a desaparecer não entrou em combate e era uma mulher. Florence Green, que se juntou à Real Força Aérea britânica ainda adolescente e trabalhou numa base militar em Inglaterra. O seu serviço só foi reconhecido em 2010, ela morreu em 2012, aos 111 anos.

Na falta de testemunhas em primeira mão, restam-nos os historiadores, os familiares que herdaram as histórias dos avós e dos pais, os diários, os objectos que regressaram da guerra — rosários, capacetes rasados por balas. Vários países, como a França e o Reino Unido, estão a lançar campanhas nacionais para obter doações destas memórias, para as musealizar, digitalizar e criar um arquivo digital, em parceria com a biblioteca digital europeia Europeana.

A Internet será um importante ponto de encontro – e de confronto — para as memórias da I Guerra. Oliver Janz, professor da Universidade Livre de Berlim, explica que, na Alemanha, a guerra de 1914-1918 não tem um grande impacto: “É uma memória muito ofuscada pela II Guerra”. Janz coordena o maior projecto de investigação internacional sobre a Grande Guerra: a construção de uma enciclopédia que estará online em Outubro, em inglês, em cuja elaboração participam mais de mil investigadores de todo o Mundo da Ásia inclusivamente (e de Portugal também).

“Raramente se foca a atenção no facto de a Grande Guerra ter sido mesmo uma guerra global, porque potências não europeias como o Japão, o Império Otomano ou os Estados Unidos também entraram nela. Foi também uma guerra global económica, e combateu-se fora do continente europeu, por exemplo em África, no Próximo e no Médio Oriente, os impérios coloniais britânico, francês e português foram arrastados para a guerra, o que significa mais de um quarto da população mundial da altura”, explicou Oliver Janz.

Com esta enciclopédia online, onde se encontra a investigação mais actual sobre o que se passou há 100 anos, podem-se confrontar as visões dos vários países beligerantes — algo que não é frequente acontecer.

UE fica de fora
A União Europeia renunciou a tentar fazer uma comemoração comum — há demasiadas visões diferentes, por vezes conflituosas. “É uma oportunidade perdida e é por isso que decidimos lançar a enciclopédia online em Bruxelas, a 8 de Outubro”, explica Oliver Janz.

“Percebe-se que as instituições europeias estejam relutantes em abordar a História e a memória da I Guerra Mundial. Mas espero que a Comissão e o Parlamento Europeu em particular não tenham ainda desistido deste centenário”, comentou Pierre Purseigle, investigador da Universidade de Warwick (Reino Unido), actualmente na Universidade de Yale (nos Estados Unidos), com uma bolsa europeia de investigação Marie Curie.

“A Europa de hoje — os seus mapas, culturas políticas, muitas das suas instituições — foram forjadas na fornalha das guerras, guerras civis e revoluções no Velho Continente entre 1912 e 1923, desde as guerras nos Balcãs até à Revolução Russa. As instituições europeias dar-nos-iam o enquadramento ideal para ter uma conversa e uma comemoração ao nível europeu”, adianta Purseigle.

O que se passou há 100 anos não é já ponto assente. As diferentes visões de cada país, de cada historiografia, estão sujeitas a variações nacionais, ou de época, ou de simples simpatia política. “Devemos ter consciência de que as visões sobre a guerra mudaram de forma drástica ao longo dos tempos e que aqueles que a viveram muitas vezes viam-na de formas que acharíamos muito surpreendentes”, alertou num artigo no Financial Times a historiadora Margaret McMillan, a directora (warden) do Colégio de Santo António na Universidade de Oxford (Reino Unido), autora de um dos novos livros sobre a I Guerra que estão a fazer furor, The War that Ended Peace.

Blackadder antipatriótico
O ministro da Educação britânico, Michael Gove, mostrou como a política da memória pode facilmente descarrilar. Causou uma enorme polémica no início do mês ao afirmar que o “desapiedado” e “agressivo expansionismo” dos líderes alemães em 1914-18 não devia ser esquecido, e que “mais do que justificou” a resposta militar britânica de então. Investiu contra uma das séries Blackadder, do humorista Rowan Atkinson, que goza com a guerra e o papel dos generais britânicos, como fomentadora de “mitos não-patrióticos”, aliada ao “revisionismo de historiadores de esquerda”.

A I Guerra Mundial foi das mais mortíferas de sempre - estima-se que tenham morrido cerca de 10 milhões de soldados e sete milhões de civis. Uma sondagem do think tank Future Think, publicada este mês, revela que 59% dos britânicos consideram que as comemorações devem ser “uma oportunidade para recordar a perda de vidas e para a reflexão nacional”. Apenas 22% diziam que se devia sublinhar a vitória sobre a Alemanha.

“Com dez milhões de mortos e milhões de veteranos mutilados e traumatizados, de viúvas e órfãos, a I Guerra Mundial é uma das tragédias que definem o século XX”, afirmou Pierre Purseigle. “O sacrifício dos combatentes e dos civis estará no centro das comemorações, e é correcto que assim seja.” O que continua a ser matéria em aberto são as origens da guerra. Sempre foram objecto de um debate apaixonado e muitas vezes altamente politizado”, reconhece o historiador britânico. “Continua a ser assim por toda a Europa, como o Reino Unido e a Sérvia nos mostraram nos últimos tempos”.

O argumento de Kusturica
Na Sérvia, o que se passou foi que o director dos Arquivos da Sérvia, Miroslav Perisic, e o realizador bósnio sérvio Emir Kusturica anunciaram ter sido descoberta uma cópia dactilografada, feita nos anos 1930, de uma carta do governador da Bósnia, Oskar Potiorek, que teria sido escrita 13 meses antes da guerra ter começado, ao chefe do Estado-Maior do exército austro-húngaro, Conrad von Hõtzendorf, apelando a uma guerra preventiva contra a Sérvia, para evitar a união dos “eslavos do Sul”.

Para Miroslav Perisic, é uma “prova” de que o assassínio, a 28 de Junho de 1914, do arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do trono do império austro-húngaro, em Sarajevo, por um jovem bósnio sérvio, Gavrilo Princip, imbuído dos sonhos da criação de uma Grande Sérvia, foi “apropriado e usado como uma cortina de fumo para perseguir o povo sérvio” e desencadear a I Guerra Mundial, segundo o jornal sérvio Blic.

Para os historiadores, não é grande coisa: não é novidade que as ambições nacionalistas da Sérvia incomodavam a Áustria-Hungria e pairava a ideia de que uma guerra seria inevitável — julgava-se é que seria um conflito regional e contido. “Normalmente, negligencia-se que a Europa de Leste e do Sudeste sofreu mais nesta guerra do que a Europa Ocidental”, sublinha o alemão Oliver Janz.

Mas agora, 100 anos depois, e mesmo após outra guerra nos Balcãs, na década de 1990, que continuou as ambições de formar a Grande Sérvia do início do século XX, o nacionalismo sérvio boicota as celebrações preparadas para Sarajevo, em colaboração com a França, ou a conferência internacional em que está empenhado Husnija Kamberovic, do Instituto de História de Sarajevo, que organiza o encontro sem o apoio francês. “Os principais políticos sérvios, e da entidade sérvia da Bósnia-Herzegovina, criticaram as manifestações que marcam o início da I Guerra Mundial em Sarajevo”, diz Kamberovic.

“Mas Sarajevo, como o local do assassínio que empurrou o mundo para uma guerra sangrenta, não devia celebrar. Sarajevo devia recordar o início da guerra da mesma forma que os japoneses evocam os ataques nucleares. Sem grandes celebrações, estátuas, concertos ou corridas de bicicleta. É difícil imaginar como é que se pode celebrar morte e assassínios”, conclui o historiador.

Compreender e questionar
Enquanto se fala de uma guerra distante, do sofrimento dos soldados, das populações civis — talvez fazendo paralelos com guerras actuais para as quais foram destacados europeus, como o Iraque e o Afeganistão —, talvez se possa levar os cidadãos a perguntar por que é que a guerra aconteceu e durou tanto tempo.

“Apesar de haver um grande interesse no centenário, não devemos presumir que haverá uma melhor compreensão geral do que foi este conflito. Políticos, editores, media - e alguns historiadores, lamento dizê-lo — preferem ficar agarrados a narrativas estabelecidas e confortáveis. Podemos perder uma grande oportunidade de abordar os temas críticos para o mundo actual que a I Guerra Mundial nos coloca”, diz Pierre Purseigle.


Um desses temas é o do consentimento da guerra: como é que as populações das nações beligerantes permitiram que o conflito durasse quatro anos? Apesar de haver movimentos pacifistas e desertores, os povos pagaram para financiar a guerra, os soldados continuaram a partir para a frente de batalha, aos milhões. É uma narrativa que deve ser posta lado a lado com a do sofrimento dos soldados, sublinha o historiador britânico. “As populações beligerantes não foram apenas vítimas da guerra. Foram também agentes da sua própria vitimização. Ao consentirem lutar, gastar dinheiro para suportar o esforço de guerra, permitiram que o conflito durasse tanto quanto durou. É fundamental que compreendamos por que consideraram esta guerra defensiva, necessária, com significado existencial.”