O centenário da Grande Guerra de 1914-18 suscita uma
reflexão sobre os riscos do mundo em que vivemos. Historiadores, analistas e
jornalistas fazem paralelos entre 1914 e 2014. Que lições nos deixa a tragédia
fundadora do século XX?
JORGE ALMEIDA FERNANDES (http://www.publico.pt/autor/jorge-alivibda-fernandes) 26/01/2014
- 09:06
Quando a Europa comemorou em 1994 os 80 anos da eclosão da Grande Guerra de
1914-18, fê-lo num estado de espírito muito
particular — o da despedida do trágico século XX. Com o fim da União Soviética,
encerrava-se uma era. A construção europeia acelerava-se e a UE preparava a
integração do Leste, reunificando o Continente. Dominava a pax americana.
Fukuyama publicava O Fim da História. Admitia-se uma “globalização feliz”.
Apenas o regresso da palavra Sarajevo e a irrupção dos nacionalismos trazia
alguma perturbação. Mas, sobretudo, tiravam-se as lições do “suicídio” de 1914
este facto já muito distante.
O espírito do tempo
mudou. “Um espectro assombra o mundo: 1914” – Harold James, professor em
Princetown, na International Affairs, da Chatham House de
Londres. “A aproximação do centenário da eclosão da I Guerra Mundial faz evocar
o modo como a instabilidade produzida por mudanças na balança do poder num
mundo integrado e globalizado pode produzir cataclismos.”
Em Janeiro de
2013, Jean-Claude
Juncker, então presidente do Eurogrupo e
primeiro-ministro luxemburguês, convidou os
jornalistas a anotarem os paralelos com 1913, “o último ano da paz na Europa”. Surgem
estranhos títulos nos jornais e revistas Europeus, americanos e asiáticos:
“1914-2014, o mesmo combate?”; “Será 2014 uma repetição de 1914?”; “Tempo de
pensar mais em Sarajevo e menos em Munique”; “A China não deve imitar os erros do Kaiser”; “Ouvindo os ecos de
1914 em 2014”; “1914 e a Alemanha de hoje?”; ou (num jornal chinês) “Deixem de
comparar a China com a Alemanha de 1914”.
No 1o de Janeiro, o Financial Times fez de 1914 o tema do seu
editorial: “Reflexões sobre a Grande Guerra — o mundo pode ainda tirar as liçoes
da catástrofe de 1914.” O diário da City pensa que “o mundo de 2014 não está à beira de
um tal desastre histórico”. Mas o centenário é uma oportunidade para estudar algumas
lições: “É uma loucura ir para a guerra na crença de que será curta e com consequências controláveis. Em
1914, alguns políticos e generais europeus, cuja visão fora moldada pelas guerras
que unificaram a Alemanha e a Itália no século anterior, incorreram nesta ilusão. O
mesmo fizeram Washington
e Londres quando invadiram o Iraque em 2003. Quão errados estavam estes chefes de
guerra em ambas as ocasiões.”
Por trás desta reflexão e destes títulos estão a tensão no Mar da China
Oriental, os focos de conflito no Médio Oriente e também uma Europa “abalada
pela crise e pela dúvida”
A guerra civil europeia
É inevitável uma
curta passagem pela Grande Guerra. “Se não podemos conceber o século XIX sem a
Revolução Francesa, não podemos pensar as
tragédias do século XX sem a Grande Guerra”, afirmou o historiador francês François Furet. Sem
ela, o fascismo, o comunismo, o nazismo e a II Guerra Mundial não seriam concebíveis. Foi uma “guerra civil europeia”, antes de ser mundial, “em que milhões de
homens foram lançados numa guerra total
e arrancados às suas solidariedades tradicionais, encontrando-se numa posição de absoluta subordinação ao Estado e ao interesse nacional. Numerosas
camadas da população aprenderam a política através da guerra. Foi a entrada
patológica (da Europa) na democracia” (Furet). “Foi a catástrofe fundadora do
século” (George Kennan).
Envolveu um grau de
violência até então inimaginável, uma “brutalização” das sociedades, culminando
numa perda dos valores — e o da vida em primeiro lugar. “A banalização da
violência continua em nós e penso que podemos ligar à I Guerra Mundial, diz o
historiador americano Jay Winter, especialista da Grande Guerra.
Porquê, porquê, porquê?
Quatro impérios desapareceram na
tormenta: o alemão, o austro-húngaro, o otomano e o russo — que deu lugar à
União Soviética. O moderno Médio Oriente e os seus conflitos nasceram desta
guerra.
Fez 19 milhões de mortos, entre
eles nove milhões de soldados. Há um termo de comparação mais eloquente. Só na
Batalha do Marne, de 7 a 12 de Setembro de 1941, a França perdeu 80 mil homens
e a Alemanha talvez outros tantos. Em toda a Guerra do Vietname, morreram 47
mil militares americanos.
Europa era o centro económico,
político e cultural do mundo, detentora de vastos impérios coloniais. Os EUA ou
o Japão eram potências emergentes. Nenhum europeu imaginava a perda do estatuto
central da Europa durante muitas gerações.
Interroga-se Jay Winter: “1918 já
está muito distante de nós mas é ainda um puzzle. Foi para quê? Porquê? Porquê
o banho de sangue? Porquê a carnificina? Esta pergunta é, para mim, a questão chave de todo o século XX. Porquê a violência? Porquê a crueldade?”
Na França e na Alemanha os
soldados partiram para a guerra como para um piquenique, saudados nas ruas por
multidões patrióticas. Esperavam passar o Natal em casa.
Clark e MacMillan
O centenário suscitou uma imensa
produção historiográfica. Mas dois historiadores têm um papel relevante no novo
olhar sobre “a actualidade de 1914”. O australiano Christopher Clark, professor
em Cambridge, publicou em 2012 um livro intitulado The Sleepwalkers — How
Europe Went to War in 1914. Os “sonâmbulos” são os políticos e militares que se
lançaram na guerra. No ano passado, a canadiana Margaret MacMillan, professora
em Oxford e Toronto, publicou um livro sobre o processo que levou à “guerra que
pôs fim à paz” — The War that Ended Peace: The Road to 1914.
Os dois livros têm muito em
comum. 0 objectivo não é procurar o “culpado” como num romance policial. O que
mais interessa aos dois autores é o modo como os europeus avançaram para a
catástrofe. Concordam com Churchill: “Nenhum episódio da I Guerra Mundial tem
um interesse comparável com o seu começo.” É esta abordagem — a da engrenagem
da guerra — que os torna politicamente “actuais”, suscitando um debate não
apenas na imprensa mas em think tanks de política internacional, da Europa à
Ásia.
O título de Clark explica-se em poucas palavras: “Os protagonistas de 1914 eram sonâmbulos,
aparentemente vigis mas incapazes de ver, atormentados pelos seus pesadelos mas
cegos perante a realidade do horror que estavam prestes a lançar no mundo.”
Estuda o quadro político que precede a guerra, o encadeado de pequenos e
grandes episódios que desestabilizam a ordem internacional e, sobretudo, as
percepções erradas dos adversários, de parte a parte, numa engrenagem que leva
à guerra a partir de um “detonador geopolítico ao longo da fronteira austro-sérvia”.
No fim da guerra, os vencedores
designaram os vencidos como “culpados”. Alguns protagonistas lembraram mais
tarde a inconsciência da época, como Lloyd George, primeiro-ministro britânico
a partir de 1916: “As nações escorregaram para o caldeirão fervente da guerra
sem o mínimo traço de apreensão ou perturbação.”
MacMillan (bisneta de Lloyd
George) centra-se no encadeamento de factos que levou à tragédia: “Afinal de contas, a
questão mais interessante é: como foi que a Europa atingiu, no Verão de 1914, o
ponto em que a guerra se tornou mais provável (...) e como falhou a paz.” Também
ela fala nos equívocos dos protagonistas, nos múltiplos erros de percepção,
sobre as intenções dos adversários ou a avaliação das suas fraquezas e forças,
na vontade de domínio ou nos seus fantasmas: o medo da Alemanha, que teme ser
cercada pela Rússia e pela França; ou o temor britânico de que o crescente
poderio da marinha alemã pusesse em causa a sua hegemonia nos mares, ameaçando
o império.
Do Mar da
China ao euro
Tudo isto são temas que nos são
familiares no mundo do século XXI. No livro Da China (2011), Henry Kissinger
dedica o capítulo de conclusão — “A História repete-se?” — à comparação entre
as relações sino-americanas de hoje e a rivalidade anglo-alemã na véspera de
1914. “Um aspecto da tensão estratégica na actual situação mundial reside no
medo chinês de que os Estados Unidos estejam a procurar conter a China — que
tem paralelo na preocupação americana de que a China esteja a procurar expulsar
da Ásia os Estados Unidos.”
Muitos temem a repetição de um
“detonador geopolítico”, de uma nova Sarajevo, desta vez no Mar da China
Oriental, combinando o contencioso sino-japonês, o choque dos dois
nacionalismos e a rivalidade sino-americana. Depois do fim da ordem bipolar da
Guerra Fria e do breve “momento unipolar” americano, emergiu “um sistema
crescentemente multipolar, opaco, imprevisível. Como em 1914, uma potência
emergente opõe-se a uma potência cansada — mas não necessariamente em
declínio”, escreve Clark num artigo publicado há dias nos jornais europeus.
Curiosamente, Clark projectou a
sua análise de 1914 sobre a crise do euro de 2010-11, quando estava a terminar
o livro. “Os líderes da zona euro, como os de 1914, tinham consciência da
possibilidade de um desfecho de consequências catastróficas” — o fim da moeda.
Mas o medo da catástrofe não foi bastante para os levar a posição consensual e
a colocar os interesses comuns acima dos particulares. Também na Europa de hoje
haveria alguns “sonâmbulos”.
Analogias e
lições
O South
China Moming Post, de Hong Kong, adverte contra as
analogias: “A ascensão da China moderna cedo foi comparada com a da Alemanha de
Guilherme II. Mas tal ‘aprendizagem’ com a História pode ser mais enganadora do
que útil. Os que tiram lições erradas da História estão a preparar-se para cometer erros ainda maiores”.
Também o analista americano
Joseph S. Nye receia que as analogias com 1914 criem a ilusão de “inevitabilidade” e
reforcem a tese de que “a ascensão do poderio da China não se poderá fazer
pacificamente” (John Mearsheimer). Contesta alguns paralelos de MacMillan: “O
mundo de hoje é diferente do de 1914, sobretudo por causa da arma nuclear. Os
dirigentes têm uma ideia do que pareceria o mundo depois de um conflito
nuclear.” Se o Kaiser
ou o Czar imaginassem o que ia acontecer aos seus
impérios teriam sido mais prudentes.
Clark tem outro entendimento das
lições da História. “A China de hoje é o equivalente da Alemanha imperial de
1914? Se é o caso, que lições devemos tirar? Se somos da opinião de que a
agressão alemã foi a causa principal da I Guerra Mundial, conclui-se que os EUA devem adoptar uma linha dura contra as actuais manobras
chinesas. Mas, se considerarmos, como é o meu caso, que a guerra de 14-18 foi
consequência da interacção entre várias potências, todas dispostas a recorrer à
violência para defenderem os seus interesses, é preciso deduzir que devemos
encontrar melhores meios de integrar as potências emergentes no sistema
internacional.”
Em geral, os homens aprendem
pouco com a História. Mesmo assim, 1914 ajuda a pensar 2014. “Penso que não
podemos tirar lições claras da História. Mas podemos aprender a afastar algumas
possibilidades perigosas”, diz MacMillan. Deixa um conselho mínimo: “Nunca
devemos tomar a paz como garantida nem acreditar que somos demasiado
civilizados para guerrear. Os europeus cometeram este erro em 1914.”
Sem comentários:
Enviar um comentário