Assalto em Tancos
Pedro Raínho 23 Outubro 2017
Passaram 117 dias desde o assalto. A Polícia Judiciária tinha o caso na mão, mas foi a Polícia Judiciária Militar que recuperou as armas e explosivos.
Esta é a história de uma luta entre polícias.
“Isto não vai ficar assim, vai ser uma vingança até à cova!”
Luís Neves, diretor da Unidade Nacional de Contra-Terrorismo (UNCT) da Polícia Judiciária (PJ) não conseguiu disfarçar o incómodo quando soube que o armamento de guerra furtado em Tancos tinha sido recuperado.
A sua equipa foi ultrapassada, apanhada de surpresa pela operação da Polícia Judiciária Militar (PJM) na madrugada de quarta-feira, 18 de outubro.
Um duro golpe para a PJ, num processo que, em muitos momentos, cada uma das polícias se preocupou mais com a gestão de protagonismos do que com a própria investigação. Foram quase quatro meses de jogos de influência e dissimulações.
Os militares venceram a guerra.
O incómodo na Polícia Judiciária, dirigida por Almeida Rodrigues, começou ainda antes do assalto a Tancos.
A acusação de 19 militares no chamado processo dos Comandos – em que a PJ não teve qualquer intervenção – deixou os inspetores da Judiciária de sobreaviso: os colegas da instituição militar estavam a conquistar demasiado palco mediático.
A guerra é antiga: há muito tempo que a própria PJ, além da GNR, tentam integrar nas suas estruturas a investigação dos crimes praticados em ambiente militar.
Quando a notícia do assalto aos Paióis Nacionais de Tancos foi conhecida, a PJ entrou em campo.
Nesse momento, venceu a sua primeira batalha, apenas três dias depois do assalto às instalações militares.
Mas a euforia duraria pouco.
PJ trava buscas a suspeito nº1: eram “extemporâneas”
O assalto aos Paióis Nacionais de Tancos tinha acontecido entre as 20 horas de dia 26 de junho e as 16h30 de dia 28 – foi nesse intervalo de tempo que as habituais rondas não foram feitas segundo as regras habituais (ou não foram feitas de todo).
Ainda nos primeiros dias de investigação no terreno, com os primeiros interrogatórios feitos, uma ideia começou a surgir na mente dos investigadores da PJM: avançar com buscas a casa e ao cacifo de um dos militares graduados de Tancos.
Mas a PJ travou a fundo essas intenções dos militares.
Os responsáveis da equipa de investigação da PJM tinham reunido indícios fortes contra um dos militares responsáveis por garantir a segurança àquelas instalações, um sargento da unidade de Engenharia 1.
Estavam prontos a avançar com as primeiras buscas ao principal suspeito do assalto e disseram-no ao coronel Manuel Estalagem, diretor da Unidade de Investigação Criminal da PJM.
O coronel, responsável pela investigação, não quis contudo dar esse passo sozinho.
Em vez disso, Estalagem pediu ao chefe da equipa de investigadores militares, capitão João Bengalinha, que entrasse em contacto com os colegas da Polícia Judiciária.
Vítor Matos, inspetor chefe da UNCT, ouviu o plano da PJM e respondeu que teria de comunicar essa intenção ao seu superior.
Era madrugada de sábado.
Luís Neves, diretor da UNCT, acabava de ser chamado a intervir.
Os inspetores da PJM tinham chegado a Tancos poucas horas depois de ser detetado o arrombamento de dois dos 29 paióis, na tarde de 28 de junho.
Quatro horas e meia mais tarde, já os primeiros militares envolvidos na segurança dos armazéns militares estavam a ser interrogados.
Foi nesses interrogatórios iniciais que os investigadores ouviram da boca de mais de um militar a frase: “Esta noite, ninguém faz rondas.”
A ordem, garantiam os homens, tinha-lhes sido dada por um dos graduados responsáveis pelas rondas.
Quando se soube que as investigações estavam em curso, o mesmo militar deixara claro: “Vocês não abrem a boca.”
Mas era tarde demais.
O seu nome já constava das notas dos inspetores da PJM.
Quando soube que os inspetores da PJM queriam avançar com as primeiras buscas, o próprio comandante da unidade de Engenharia – um dos cinco coronéis exonerados com efeitos temporários pelo chefe do Estado-Maior do Exército (CEME) – dispôs-se a ser, também ele, alvo de buscas.
A estratégia da investigação era simples: dispersar atenções para que o foco não recaísse apenas sobre o principal suspeito.
Mas o plano da equipa de investigadores da PJM ficou sem efeito.
O diretor da UNCT considerava ainda não ter chegado o momento de partir para a ação. Nesse momento, terá dito Luís Neves a Vítor Matos, era “extemporâneo” avançar para o terreno.
As buscas – e a quase certa detenção do militar sobre o qual recaíram as primeiras suspeitas – ficaram suspensas.
Não avançaram por decisão da Polícia Judiciária.
Um dos pratos da balançava começava a pesar mais que o outro na investigação.
Joana Marques Vidal entra na investigação
O travão do diretor da UNCT às buscas ao principal suspeito da PJM, poucos dias depois do assalto, foi apenas o primeiro sinal de que havia um desequilíbrio na relação entre as duas polícias.
Aliás, a relação estava em declínio acentuado e essa queda nunca seria revertida.
Dias depois do bloqueio às buscas, um diferendo entre os diretores dos laboratórios científicos das duas polícias levaria a procuradora-geral da República a entrar em cena.
Segunda-feira, 3 de julho.
As duas equipas de investigação ao furto de Tancos juntam-se no DCIAP para as apresentações formais.
Além dos quatro investigadores (dois de cada equipa), estavam na sala Vítor Magalhães e João Melo, os dois procuradores titulares do processo.
É nesse momento que informam os inspetores de que as informações recolhidas por cada uma das equipas seriam reunidas num único processo.
À PJM era entregue a investigação ao furto e aos militares que pudessem ter ajudado à concretização do assalto; a PJ investigaria o destino das armas e ia atrás dos autores do assalto.
Havia, no entanto, uma ligeira nuance: o processo ficava com um “dono” principal, a Judiciária, e todas as informações obtidas pelos inspetores militares entrariam para um apenso desse processo principal.
Uma hierarquia que a Procuradoria-Geral da República tornaria clara no comunicado que enviou às redações no dia seguinte.
Mas já se tinham sucedido uma série de momentos de tensão entre as duas polícias que acabariam por marcar a relação dos meses seguintes.
O primeiro episódio aconteceu num encontro paralelo à reunião inicial entre magistrados e investigadores.
Além de procuradores e inspetores, na primeira reunião entre as equipas, no DCIAP, participavam também os diretores de cada um dos laboratórios científicos.
Depois das apresentações, Luís Neves, diretor da Unidade de Contra-Terrorismo da PJ, deu indicação para que ambos se ausentassem da sala para poderem discutir entre si outras questões técnicas relacionadas com a investigação.
Naquela altura, os inspetores da PJM já tinham estado em Tancos.
Já tinham sido recolhidas impressões digitais, pegadas e tinham sido tiradas fotografias aos canhões das fechaduras arrancados dos paióis de onde foi levado o material de guerra.
O diretor do laboratório da PJ, Carlos Farinha, queria ter acesso a essas perícias, uma vez que os inspetores da Judiciária não tinham esse material da investigação na sua posse.
O tom cordial da reunião anterior terminaria ali.
Nuno Reboleira, responsável do laboratório militar, recusou o pedido, dizendo que só com uma autorização superior passaria essas provas para a mão da PJ.
Quando recebeu uma chamada de Farinha, o diretor da PJM, Luís Vieira, já tinha sido informado do teor dessa conversa tensa.
Ao telefone, também ele recusou o pedido.
“Eu conheço bem a dimensão do vosso laboratório”, terá ouvido a Carlos Farinha dizer do outro lado da linha.
O diretor da PJM percebeu nesse momento que a pressão sobre os seus homens ia aumentar e começou a pensar no passo que teria de dar em seguida para a sua instituição não ser encostada no processo: falar com os chefes militares, com o ministro… com o Presidente da República?
Luís Vieira não imaginava, no entanto, que da próxima vez que o telefone tocasse seria a própria procuradora-geral da República a exigir-lhe que entregasse tudo o que o seu laboratório tinha recolhido em Tancos.
“O seu processo perdeu autonomia”, ter-lhe-á dito Joana Marques Vidal num tom descrito como “feroz” e “acutilante”.
O facto de o coronel Luís Vieira (diretor da PJM) e Almeida Rodrigues (diretor da PJ) serem amigos de infância não impediu que as duas polícias se envolvessem num braço de ferro pela dianteira da investigação ao desaparecimento do material de guerra.
Marcelo vai “ao terreno” dar “apoio” à investigação
Os acontecimentos à margem da investigação atropelaram-se logo nos primeiros dias a seguir ao assalto aos Paióis Nacionais de Tancos.
Depois da intervenção de Joana Marques Vidal no processo, a Procuradoria-Geral da República lançou um comunicado a 4 de julho que seguia a linha das palavras de Marques Vidal ao diretor da PJM no dia anterior: o Ministério Público era “coadjuvado” pela PJ e a polícia militar daria “total colaboração institucional” à investigação.
Poucas horas depois, o Presidente da República teria uma noção mais exata do clima que se vivia entre as duas polícias.
Marcelo Rebelo de Sousa chegou a Tancos a meio da tarde dessa terça-feira.
Durante duas horas, o Chefe de Estado esteve com um conjunto alargado de altos responsáveis políticos e militares: no encontro participaram o chefe do Estado-Maior General Forças Armadas (CEMGFA), o chefe do Estado-Maior do Exército (CEME), o ministro da Defesa, o secretário de Estado da Defesa, o diretor da PJM, o inspetor-chefe responsável pela investigação da PJM e um elemento do laboratório científico daquela polícia.
Foi a primeira vez que o coronel Luís Vieira falou com o Presidente da República.
O diretor da PJM fez um resumo sobre a última semana, desde o momento em que tinha soado o alerta para o assalto até aos interrogatórios feitos pela sua equipa de inspetores. Pelo meio, já a oposição da PJ tinha inviabilizado as buscas ao principal suspeito e já o MP tinha colocado a investigação nas mãos da PJ.
Durante essa exposição, Luís Vieira deixou cair uma informação que surpreendeu muitos dos presentes: a Polícia Judiciária tinha sido avisada de que estava iminente um assalto a uma instalação militar (como o Observador e a revista Sábado escreveram).
Sentado à direita de Marcelo Rebelo de Sousa, que encabeçava a mesa, o chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, general Pina Monteiro, tomou a palavra.
“Fico muito alarmado com o que ouvi aqui”, disse o chefe militar, garantindo que se tivesse tido conhecimento antecipado desse alerta teriam sido tomadas outras medidas de segurança.
A informação tinha sido passada à PJ por um informador.
O homem dizia ter sido sondado para realizar um assalto a uma instalação militar num raio de 60 quilómetros em redor de Leiria (56,5 quilómetros separam aquela cidade da base de Tancos) e a PJ pediu autorização judicial para começar a escutar as comunicações do seu informador. O juiz Ivo Rosa não validou o pedido e a investigação ficou parada.
Até ao assalto a Tancos.
Cerca de três meses mais tarde, Marcelo ouviu a intervenção do diretor da PJM em Tancos e registou.
À saída da reunião,o chefe de Estado disse ter sido “muito útil e importante em termos informativos” ter ido “ao terreno”.
Mas havia outra mensagem a passar: Marcelo queria “saudar a investigação” que ainda dava os primeiros passos.
“Desde a primeira hora, disse que era fundamental levar a investigação até ao fim” e, por isso, foi ao terreno.
“Quero exprimir o apoio àquilo que tem sido feito em termos de investigação.
É muito importante e eu não queria deixar de formular aqui uma palavra de apoio a essa investigação”, disse o Presidente.
Aquela foi uma “ocasião para apoiar a investigação em curso e estimular, incentivar aquilo que venham a ser os passos seguintes da investigação”.
Entretanto, cada uma das polícias continuava a sua investigação, sem que houvesse partilha de informação entre as equipas.
Enquanto a PJM focava os esforços nos interrogatórios aos militares de Tancos, a PJ analisava matrículas que tivessem alguma relação com a base militar, reconstituía as deslocações mais suspeitas e seguia de perto os seus próprios “alvos”.
E, escrevia o Expresso em setembro, virava-se para Espanha, onde acreditava que tinham sido comprados os instrumentos usados para abrir os portões dos paióis onde estava guardado o armamento militar.
Ambas as equipas investigavam o assalto a Tancos mas, na prática, era como se estivessem a trabalhar em processos sem qualquer relação entre si.
A comunicação era escassa, os detalhes sobre a investigação ficavam fora das conversas entre os inspetores de cada um dos lados e os avanços eram literalmente escondidos dos outros investigadores.
Até que a PJM tentou libertar-se da PJ.
Ministro da Defesa no meio de uma batalha jurídica
Para a Polícia Judiciária Militar, o processo de Tancos tinha um problema jurídico de base que comprometia tudo o resto: na ótica da instituição liderada por Luís Vieira, o único crime de que havia informação concreta era o furto de material de guerra: tinham desaparecido granadas, lança-rockets, explosivos e munições de uma instalação militar.
As referências da PGR a crimes de “associação criminosa, tráfico de armas internacional e terrorismo internacional” não tinham sustentação.
Foram recuperados os manuais de direito militar e pedidos pareceres jurídicos para tentar separar as águas.
Toda a linha de pensamento dos inspetores militares assentava no número 113 do Código de Justiça Militar (CJM).
O artigo, que respeita à “competência por conexão”, tem apenas uma linha e refere que “a conexão não opera entre processos que sejam e processos que não sejam de natureza estritamente militar”.
Por outras palavras, a investigação ao furto de armamento militar de Tancos não poderia ser feita a par da “investigação mais vasta” que o DCIAP tinha em mãos.
Para fundamentar essa posição, a equipa de investigadores da PJM recorreu a um conhecido jurista com peso político junto dos socialistas e das próprias polícias — a que o Observador teve acesso — para dar força a esse argumento.
Estávamos no início de agosto e a instituição liderada por Luís Vieira tentava cortar as amarras que a prendiam à PJ.
O parecer referia, precisamente que o artigo 113 do CJM distinguia (e separa) os crimes militares dos crimes civis.
“Assim, nestes casos, nunca é admitida a conexão de processos”, refere o documento de duas páginas, antes de acrescentar que este regime autónomo “tem como fundamento a especificidade da justiça militar, que não foi anulada pela extinção dos tribunais militares em tempos de paz”.
E concluía: “Perante a impossibilidade legal de conexão, não se pode, obviamente, transformar um dos processos “inconectáveis” num apenso de outro, ainda que se pretenda proceder futuramente a uma separação de processos (por exemplo, na fase de julgamento).”
Esse parecer — e a sua linha de argumentação — chegou ao conhecimento de José Azeredo Lopes.
O ministro da Defesa também já tinha ouvido diretamente de Luís Vieira a insatisfação que o diretor da PJM sentia com a falta de colaboração da PJ.
E, segundo algumas fontes, terá decidido documentar-se, pedindo um segundo parecer a um conceituado advogado do norte do país.
A Defesa nega que isso tenha acontecido.
O facto é que nenhum documento chegou alguma vez a fazer parte do processo.
Seria uma arma de negociação política que, na prática, não teve qualquer efeito.
A investigação continuou nas mãos da PJ e a comunicação continuou a ser nula.
Essa guerra entre as duas polícias até poderia ter acabado na última quarta-feira, quando a Polícia Judiciária Militar recuperou todo o armamento furtado de Tancos à exceção das munições de 9 milímetros.
Mas não.
A descoberta das armas e explosivos de guerra abriu mais uma brecha entre as duas instituições.
Agora, a PJ quer investigar a alegada denúncia anónima que o major Vasco Brazão, que também investigava o caso de Tancos, recebeu às três da manhã da última quarta-feira durante o piquete noturno, com a indicação exata do local onde estava o material.
O inspetor da PJM saiu de Lisboa em direção à Chamusca.
Para o local foram também convocados militares da GNR de Loulé que estariam envolvidos numa investigação naquela região.
Nada na chamada telefónica fazia adivinhar que, ao ar livre, os vários caixotes furtados de Tancos estariam ali em condições de serem recuperados.
Devido à sensibilidade do material, foi chamada uma equipa do laboratório da PJM e também elementos da equipa de inativação de explosivos do Exército, que chegaram já às primeiras horas da manhã.
Os caixotes foram então transportados para o Campo de Santa Margarida, ali ao lado, para serem analisados e só aí se confirmou que o armamento coincidia com o material desaparecido.
A PJ seria informada da descoberta poucas horas depois.
No mesmo dia em que foi descoberto do material, na passada quarta-feira, houve uma reunião de emergência que juntou investigadores da PJ e da PJM, diretor do DCIAP incluído, os procuradores Vítor Magalhães e João Melo, e ainda o diretor da Unidade de Investigação Criminal da GNR.
Os procuradores deixaram em aberto a possibilidade de se fazer uma investigação aos próprios inspetores para descobrir quem andou a falar com quem.
A PJ suspeita da veracidade da chamada anónima que permitiu recuperar o material desviado no maior assalto de sempre a uma instalação militar em Portugal.
A guerra das polícias sobre o caso ainda não acabou.
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