Assalto em Tancos
Valentina Marcelino 26 Setembro 2018 — 00:10
Em Tancos houve roubo, a suspeita de que a Polícia Judiciária Militar participou numa farsa quando o material de guerra foi devolvido, e uma investigação da PJ sobre a PJM.
O caso tornou-se mais complexo e o diretor da PJM foi detido.
Causas e razões ainda não são conhecidas.
E do roubo de Tancos continua a pouco saber-se.
Húbris...
Mais uma vez a Polícia Judiciária (PJ) deu a uma das suas operações um nome enigmático. A detenção de sete militares, quatro da Polícia Judiciária Militar (PJM), entre os quais o próprio diretor, e de três elementos da GNR, bem como do presumível autor do roubo, levou o nome de código Operação Húbris.
"Orgulho ou autoconfiança excessiva: arrogância; insolência" é o significado.
Para os gregos, húbris era uma conduta desmedida considerada um desafio aos deuses e que acarreta a ruína de quem assim age. O DN questionou a PJ e a Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre o porquê da escolha. "Foi o que se passou", é a tese da PJ e do Ministério Público, justificada por fonte diretamente envolvida na investigação. Tudo atribuído à PJ Militar.
Em causa estará a suspeita de que os militares agora detidos terão sido coniventes com os autores do roubo, não no assalto propriamente dito, mas na entrega do material de guerra furtado - recorde-se que o material foi encontrado três meses depois, na Chamusca, pela PJM. Os militares são suspeitos de terem encenado a entrega, em cumplicidade com o próprio autor do roubo - cujo crime terão ignorado, não comunicando à PJ, que era a dona da investigação, sequer este contacto.
Do roubo de Tancos e da forma como tudo decorreu, quem o proporcionou ou não, e se há mais envolvidos, ainda pouco se sabe. Um suspeito do roubo está detido - sabe-se que tinha ligações ao mundo criminal, nomeadamente ao tráfico de armas. Mas a investigação espera agora apurar o resto, nomeadamente se havia cumplicidades internas.
O confronto entre as duas polícias foi conhecido durante a investigação - mas não havia sinais de um desfecho destes. Segundo a PJ, os militares da PJM terão conspirado com o próprio autor do assalto para organizar a alegada "recuperação" do material de guerra. Se foi apenas por "orgulho, insolência e arrogância" - como indica o nome da operação e é convicção da PJ e do MP - ou por outro motivo, é o que está ainda por esclarecer no processo.
Em todo o caso, a questão é grave e motivou a detenção do próprio diretor da PJM, ontem. Aliás, as suspeitas são de "factos suscetíveis de integrarem crimes de associação criminosa, denegação de justiça, prevaricação, falsificação de documentos, tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, abuso de poder, recetação, detenção de arma proibida e tráfico de armas".
Os primeiros relacionados com os militares, os três últimos com o suspeito do assalto. No entender dos responsáveis pela operação, os militares quiseram perturbar a investigação da Unidade Nacional de Contraterrorismo (UNCT) da PJ, na altura liderada por Luís Neves, o atual diretor da PJ. Mas não há certeza de que tenha sido essa a motivação dos militares.
Dois momentos-chave dos problemas na investigação
1)- Há dois momentos-chave no processo, sempre na perspetiva da investigação do MP e da PJ. Seis dias depois do assalto, a 4 de julho de 2017, Marcelo Rebelo de Sousa deslocou-se a Tancos e encontrou-se com um conjunto alargado de altos responsáveis políticos e militares: o chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA), o chefe do Estado-Maior do Exército (CEME), o ministro da Defesa, o secretário de Estado da Defesa, o diretor da PJM, o inspetor responsável pela investigação da PJM e um elemento do laboratório científico daquela polícia.
O chefe do Estado ouviu o diretor da PJM, coronel Luís Vieira, agora detido, a fazer um resumo dos últimos dias e dos obstáculos colocados pela PJ à sua investigação. Uma das situações tinha sido quando os polícias militares tinham querido fazer buscas no quartel e a PJ teria entendido que não era ainda oportuno.
Foi aí também que o coronel terá revelado uma informação que surpreendeu muitos dos presentes: o MP tinha sido avisado no início do ano de que estaria em preparação um assalto a uma instalação militar da zona centro (onde se localiza Tancos) e o CEMGFA não tinha sido informado.
Ao trazer a questão a público, Luís Vieira terá comprometido a investigação do MP e da PJ, pois terá alertado publicamente os suspeitos sobre a vigilância que estavam já a ser sujeitos. "A partir daqui a investigação deparou-se com inúmeras dificuldades, pois os suspeitos souberam que estavam debaixo de olho por causa da denúncia", refere fonte judicial que acompanhou o processo.
2) - O segundo momento foi a 18 de outubro de 2017, quando a PJM anuncia, em comunicado, que "na prossecução das suas diligências de investigação no âmbito do combate ao tráfico e comércio ilícito de material de guerra, recuperou (...) na região da Chamusca, com a colaboração do núcleo de investigação criminal da Guarda Nacional Republicana (GNR) de Loulé, o material de guerra furtado dos Paióis Nacionais de Tancos". Ou seja, tinha sido recuperado o material roubado.
Este anúncio levantou suspeitas na PJ. Primeiro pelas "diligências de investigação" da PJ Militar quando o inquérito estava sob coordenação do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) e da PJ, que as desconhecia; depois pelo envolvimento da GNR de Loulé, bem longe do local em causa. Aliás, ninguém percebeu, na altura, a ligação da GNR do Algarve ao caso.
A investigação que se seguiu, através das vigilâncias e escutas realizadas, terá conseguido estabelecer as ligações entre os militares de Loulé e da PJM com o suspeito do roubo - de nacionalidade portuguesa - e fazer o "filme" da alegada recuperação do material.
"Com este comunicado, a PJM simplesmente autoincriminou-se", diz uma fonte do processo. A justificação dada para a PJM não ter informado a PJ era não saber que o material de que tinha sido avisada por uma chamada anónima seria o de Tancos. Diz a mesma fonte que "não havia qualquer informação de outros roubos daquela dimensão".
Por outro lado, acrescenta, "a equipa da PJM que foi ao local era a mesma que estava envolvida na investigação a Tancos". A PJM só informou a PJ depois de ter retirado do local, perto da Chamusca, os caixotes do material de guerra e os ter transportado para o quartel de Santa Margarida, impedindo a PJ de fazer as perícias no local - o que provocou grandes críticas na altura.
O DN sabe que a partir daqui o Ministério Público ficou numa desconfortável posição de passar a PJM a alvo da própria investigação em que estava envolvida - o que trouxe uma complexidade ainda maior a um caso que já era grave e de interesse nacional. Foi aberto outro inquérito - de que resultou a operação desta terça-feira.
O que não se sabe
O que se passou quando foi encontrado o material de Tancos?
Terá havido um acordo entre as partes - o suspeito do roubo e a PJM?
Haverá mais alguma questão envolvida?
É difícil explicar que haja uma polícia, ainda por cima militar, que tenha prejudicado uma investigação da qual fazia parte - e não se percebe bem qual o motivo.
A explicação da PJ, de que terá sido feito no âmbito das guerras entre as duas polícias talvez não seja suficiente.
Trata-se de militares de carreiras longas e respeitadas.
O que algumas fontes referem é que a PJM considerava que a "recuperação" do material de guerra na Chamusca devia ter sido ponto final neste grande incómodo para as Forças Armadas que foi o roubo de Tancos. O ministro da Defesa Nacional, Azeredo Lopes, congratulou-se no mesmo dia com o facto, sublinhando que era "a primeira vez em democracia" que se recuperava material de um furto desta natureza.
Já em janeiro deste ano, o Chefe do Estado-Maior-General do Exército, Rovisco Duarte, dizia que o furto era um "assunto encerrado". "Os paióis estão desativados, fizemos a transferência das munições para Marco do Grilo, Santa Margarida e Alcochete e os processos que havia de âmbito disciplinar correram a sua tramitação dentro dos prazos legais", afirmou.
A descoberta do material, na Chamusca, não foi mesmo o fim, mas o princípio de uma nova investigação no caso de Tancos.
O Exército abriu processos disciplinares a quatro militares que prestavam serviço em Tancos. A pena mais gravosa foi aplicada a um sargento do regimento de Engenharia 1, a proibição de saída durante 15 dias, por ter sido provado que "não mandou fazer as rondas como estava previsto na norma de execução permanente".
Acontece que não foi mesmo o fim, mas o princípio de uma nova investigação. Nem Marcelo Rebelo de Sousa nem António Costa deram o caso por terminado - ambos fazendo referências várias à complexidade e demora da investigação. E os procuradores do DCIAP e da UNCT continuaram o seu trabalho. No processo acabaram por conseguir também chegar ao suspeito do roubo - o que poderá agora ajudar a chegar à verdade sobre o que aconteceu de facto.
Ao final da noite de terça-feira soube-se a notícia de que um dos militares suspeitos está em missão na República Centro Africana - trata-se de um major que era responsável pela investigação e porta-voz da PJM, e que terá recebido a denúncia anónima.
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