JOÃO MANUEL ROCHA
11/05/2014 – 19:49
Governo de Kiev qualificou referendo no Leste como uma “farsa
criminosa”. Rebeldes querem criar “corpos do Estado e autoridades militares tão
depressa quanto possível”.
Nikolai “quer ser
independente de todos” e diz que “a Jugoslávia acabou e agora as pessoas vivem
bem”.
Foi por isso que o
antigo operário votou, na periferia de Mariupol. Irina, entrevistada também
pela AFP, decidiu manter-se à margem porque “tudo isto” a faz sentir
“desconfortável”. “Não é uma votação normal. Vejam o que se passa, as pessoas
vão votar no meio de homens armados”, dizia domingo de manhã, no centro de Donetsk.
O referendo em que os
ucranianos de uma dúzia de cidades das regiões de Donetsk e Lugansk foram
chamados às urnas pelos separatistas pró-russos, teve uma elevada afluência e
terá um resultado previsível. Mas os seus efeitos são incertos. Zhenia, um estudante
de 20 anos que a Reuters ouviu em Slaviansk, onde votou, tem como adquirido o
pior dos cenários sobre o futuro próximo: “Vai ser ainda guerra”.
Denis Pushilin,
co-presidente da autoproclamada República Popular de Donetsk, disse, citado
pela agência Interfax, que a partir do anúncio dos resultados, previsto para
esta segunda-feira, os soldados governamentais serão considerados “ocupantes” e é preciso criar
“corpos do Estado e autoridades militares tão depressa quanto possível”.
A declaração aumenta
a incerteza sobre o futuro próximo da Ucrânia e das relações entre a Rússia e o
Ocidente. Mas mostra também uma aparente descoordenação entre os líderes
pró-russos. Roman Liaguine, presidente da comissão eleitoral da região, citado
pelo diário francês Le Monde,
tinha dito que em caso de vitória do “sim”, as regiões “soberanas” de Donetsk e
Lugansk continuariam a fazer parte da Ucrânia e que só uma recusa do Governo de
Kiev em aceitar alterações ao seu estatuto levaria a um pedido de integração na
Rússia.
Combates em Slaviansk
Nalgumas das zonas
onde se realizou o referendo, a Reuters deu conta de um ambiente quase festivo
em algumas improvisadas assembleias de voto. Noutras imperou a tensão. Em
Slaviansk, cercada por forças ucranianas, o dia começou com combates, iniciados
na noite de sábado, à volta da torre da televisão, nos arredores. Ao princípio
da manhã de domingo foram ouvidas explosões, pouco antes de os eleitores
começarem a dirigir-se às assembleias de
voto do centro, por ruas com barricadas formadas por árvores caídas, pneus,
ferro-velho. Mas o balanço feito a meio da tarde por um porta-voz da
autoproclamada República de Donetsk, dizia que “nenhum incidente importante”
tinha ocorrido.
A ausência de
observadores e a falta de garantias de independência abre campo às suspeitas.
Repórteres da BBC que visitaram assembleias de voto nas regiões de Donetsk e
Lugansk descreveram casos de ausência de cadernos eleitorais e situações em
que, embora existissem, a falta do nome na lista não foi impedimento para
votar. Notaram também falta de privacidade. Meios de comunicação ucranianos
divulgaram um vídeo e fotos que mostram homens supostamente
capturados na
periferia de Slaviansk, no sábado, com uma mala de boletins preenchidos com
votos “sim”. Já antes, os serviços de segurança de Kiev tinham distribuído uma
gravação, cuja autenticidade não pôde ser confirmada, sobre uma conversa entre
um nacionalista russo e um chefe rebelde de Donetsk. “Façam o que quiserem e
escrevam que foi 99%”, ou “digamos 89%”, diz a primeira voz.
Os pró-russos não
estabeleceram qualquer taxa mínima de participação para considerarem válida uma
votação que tanto o poder interino da Ucrânia como a União Europeia e os
Estados Unidos consideram ilegal. Ao início da tarde de domingo reivindicavam
já uma participação de perto de 70%.
O governo de Kiev
qualificou como “farsa criminosa” a consulta eleitoral que pode levar à
secessão das regiões da área industrial de Donbass,
fronteira com a
Rússia. “O referendo de 11 de Maio inspirado, organizado e financiado pelo
Kremlin é juridicamente nulo e não terá qualquer consequência jurídica para a
integridade territorial da Ucrânia”, declarou, em comunicado, o Ministério dos
Negócios Estrangeiros.
No comentário à
votação, a União Europeia falou em “supostos referendos” e repetiu, pela boca
de Maja Kocijancic, porta-voz da chefe da diplomacia, Catherine Ashton, o que
já se sabia: que os considera “ilegais” e não os reconhece. Em Baku,
Azerbeijão, o Presidente francês, François Hollande, referiu-se
aos escrutínios como
“falsas consultas”, “sem sentido” e “nulas”. “Não quero usar a palavra
referendo porque não há nenhum”, disse. “A única eleição que vale”,
acrescentou, é a das presidenciais ucranianas previstas para o próximo dia 25.
O secretário
americano da Defesa, Chuck Hagel, acusou entretanto a Rússia de, ao contrário
do anunciado pelo Presidente russo, Vladimir Putin, não estar a retirar as
tropas estacionadas junto à fronteira, calculadas pela aliança atlântica, a
NATO, em 40 mil soldados. “É preciso perguntar ao Presidente porque afirma que
estão a sair, quando na realidade não é assim”, disse à televisão ABC.
Schroeder culpa UE
A generalidade dos
dirigentes ocidentais não hesita em atribuir à Rússia a responsabilidade pela
situação na Ucrânia, onde nas últimas semanas foram mortas dezenas de pessoas.
Não é o caso do antigo chanceler alemão Gerhard
Schroeder, para quem
o problema foi criado pela União Europeia, que considera ter obrigado o Governo
de Kiev a escolher entre o Ocidente e a Rússia. “O erro fundamental vem da
política da UE a favor de um tratado de associação", disse, numa
entrevista ao jornal Welt am
Sonntag.
“A UE ignorou o facto
de a que a Ucrânia é um país profundamente dividido culturalmente. Desde
sempre, as pessoas do Sul e do Leste do país são mais viradas para a Rússia e
as do ocidente mais viradas para a UE”, disse. Schroder, que é amigo de Putin,
relativizou a influência da Rússia sobre os separatistas. “A ideia de que
bastaria o Presidente russo, o chefe do Governo, ou quem quer que fosse, dizer
‘basta’ para que tudo entrasse na ordem não é correcta nem realista”, comentou.
O líder da Alemanha entre 1998 e 2005 rejeitou as críticas que o acusam de
parcialidade na questão por ser presidente do grupo accionista Nord Stream,
formado para construir um gasoduto de transporte de gás russo para a Europa
através do Báltico, que é detido em 51% pela Gazprom, empresa controlada pelo
Estado russo.
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