ANÁLISE
Não pretendo apagar as determinações da economia mas sublinhar a dimensão do petróleo como “arma política”.
O preço do crude começou a baixar por duas razões: quebra na procura mundial e excesso de produção.
Para a Arábia Saudita, o mais ameaçador aspecto da “abundância” foi a subida exponencial da produção de petróleo de xisto nos Estados Unidos, que ameaçava a sua preponderância no mercado mundial.
A decisão de manter a produção e fazer cair drasticamente o preço — o inverso das crises petrolíferas do século XX — visa, em primeiro lugar, atacar o petróleo de xisto.
Mas envolve também cálculos políticos mais sofisticados.
Assiste-se a uma súbita recuperação da centralidade saudita na geopolítica energética e, consequentemente, do seu estatuto de potência regional.
Entre as muitas “vítimas” da quebra dos preços estão países como a Nigéria ou a Venezuela, todos os que têm custos altos de extracção ou os que dependem excessivamente da receita energética.
Muitos deles têm dificuldade em suportar um preço abaixo dos 100 dólares por barril.
Os casos com maiores implicações políticas são os da Rússia e do Irão.
Sauditas e americanos
Os sauditas dispõem das maiores reservas do mundo conhecidas, com um baixíssimo custo de extracção.
Podem por isso suportar um preço baixo durante muito tempo.
É a arma com que jogam.
Um dos aspectos mais significativos desta crise é que, sendo o petróleo de xisto americano o alvo determinante da nova política saudita, parece haver uma intrigante cumplicidade entre os dois países.
Os produtores americanos com custos mais elevados terão de fechar as suas explorações. Mas Washington não parece demasiado preocupada, porque calculará que, em compensação, poderá retirar dividendos políticos.
Olhemos para um ano antes.
O acordo preliminar de Novembro de 2013 entre o Irão e o grupo 5+1 (Estados Unidos, Rússia, China, França, Grã-Bretanha e Alemanha), sobre o nuclear iraniano, fez vislumbrar uma “viragem tectónica” na paisagem do Médio Oriente.
A mais curto ou longo prazo, Teerão poderia retomar o papel de grande potência regional e abrir as portas a uma cooperação estratégica com os Estados Unidos, desejada por muitos estrategos americanos.
Desde a invasão americana do Iraque, a política regional passou a ser dominada pela rivalidade entre Estados sunitas e xiittas.
A Arábia Saudita sofrera um desaire na Síria, depois de ter visto o Iraque cair sob influência iraniana.
A seguir, a irrupção dos jihadistas do Estado Islâmico reforçou a colaboração entre Washington e Teerão.
Hoje, Riad terá recuperado a sua debilitada influência sobre a Administração Obama.
“Os sauditas nunca deixaram de usar os petrodólares com fins políticos: é a sua principal arma diplomática”, escreve David Gardner, do Financial Times.
A sua obsessão é impedir uma futura hegemonia do Irão xiita no Golfo.
O Irão, sujeito a sanções, precisaria de exportar o seu petróleo a um preço bem acima dos 100 dólares o barril.
A decisão saudita é um golpe importante no sentido de “estrangular a economia iraniana”, frisa o analista americano John Hulsman, do Council on Foreign Relations.
Interessante é que os americanos também poderão ganhar.
Sem impor novas sanções a Teerão — o que ameaçaria o frágil processo negocial — vêem aumentar a pressão sobre os ayatollah, o que poderia reforçar as perspectivas de um acordo no dossier nuclear.
Por outro lado, os sauditas não choram a sorte da Rússia de Vladimir Putin, sua adversária na Síria, que esperam ver enfraquecida.
E muito menos a chorarão os americanos.
O jornalista americano Jordan Weissman ironizou a propósito da situação de Putin: “Parece que a arma económica mais poderosa de que os Estados Unidos dispõem contra a Rússia são os poços de petróleo do Dakota do Norte e do Texas” — que desencadearam a queda do preço do petróleo.
Que fará Putin?
A situação da Rússia é a mais ameaçadora de todas.
Os analistas não falam apenas em “crise económica” mas no “colapso do sistema económico de Putin”, que não soube diversificar a economia e a manteve refém dos preços do gás e do petróleo, para lá duma corrupção sistémica.
O risco de bancarrota é real.
Escreve o economista russo Serguei Guriev: “Apenas nos restam duas certezas.
Primeiro, sem o levantamento das sanções ou sem a subida do preço do petróleo, a economia russa comportar-se-á pior em 2015.
Segundo, podemos prever que a resposta de Moscovo — tanto na economia como na política externa — será imprevisível.”
O grande problema é exactamente esta imprevisibilidade.
Nenhuma reconversão económica se faz no curto prazo e as questões a que o Kremlin tem de dar resposta são imediatas e drásticas: moeda em descalabro, perda de confiança dos russos, capitais em fuga e nenhuma perspectiva de investimento estrangeiro.
Muitos analistas ocidentais invocam a necessidade de Putin aceitar uma “retirada estratégica” na Ucrânia como forma de recuperar alguma margem de manobra.
Mas o que está em jogo é o próprio estatuto de Vladimir Putin.
Plebiscitado pelos russos como o “líder forte” que restabeleceu a estabilidade e a grandeza russa, é o seu “sistema” que está ameaçado de desabamento — pela queda do esteio do petróleo.
Depois de ter atingido o pico da confiança pública com a anexação da Crimeia e a intervenção na Ucrânia, corre o risco de ver derreter a popularidade.
“Putin é o símbolo da Rússia e do Estado para os cidadãos comuns”, declara à Bloomberg Igor Bunin, presidente do Centro de Moscovo para as Tecnologias Políticas.
“As pessoas olham-no como a estrela da sorte que as salvará.
Têm medo de o perder como símbolo.”
Vão agora enfrentar um choque terrível.
Nos últimos anos a táctica de Putin consistiu em mostrar-se como o paladino de um Estado forte e de uma Rússia forte, cercada de países hostis.
Foi mestre no uso da arma do patriotismo.
Pode mudar de imagem?
Optará por um realismo frio ou por uma escalada nacionalista e beligerante?
É o reino da imprevisibilidade.
Nos aviões dá-se um conselho: “Apertem os cintos.”
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