PUTIN . Queda do preço do barril de petróleo afacta fortemente a Rússia
Texto: Jorge Nascimento Rodrigues
Fotos: REUTERS
Diário 16 de Dezembro de 2014
Para o economista russo Constantin Gurdgiev, radicado em Dublin, a economia russa tem ainda alguma margem de manobra face à estagnação e fuga de capitais que vive, ainda que precise de uma mudança radical do seu modelo económico. O problema central é geopolítico, diz o professor no Trinity College. O Ocidente tem de deixar de encurralar a Rússia no papel de mera potência regional e a Rússia tem de dar passos de conciliação na crise no Leste da Europa.
A economia russa deverá terminar o ano com um crescimento económico de 0,2%, uma descida significativa da taxa de 1,3% verificada no ano passado. O Banco Central da Rússia admite nas suas previsões para 2015 e 2016 que o Produto Interno Bruto (PIB) poderá estagnar com uma inflação nos dois dígitos. Se o preço do barril de petróleo continuar abaixo dde 60 dólares, a contracção da economia em 2015 poderá situar-se entre 4,5% a 4,7%, referiu, esta semana, a governadora do banco central, Elvira Nabiullina.
ENTREVISTA: O académico Constantin Gurdgiev não acha que o abalo no milagre económico russo vá provocar ondas de choque políticas internamente
A queda colossal do preço do barril de petróleo desde junho está a afectar seriamente a economia russa e as contas públicas do Kremlin que necessitam de um barril a 100 dólares ou mais. Nos mercados cambiais, o rublo está em derrocada. Desvalorizou-se 66% face à moeda única europeia desde o início do ano até ao fecho de segunda-feira. O euro ultrapassou na segunda-feira a barreira dos 82nrublos e o câmbio desceu esta terça-feira para 75 dólares depois da decisão do Banco Central Russo em subir esta madrugada a taxa directora para 17%. A mais espectacular subida desde 1998. Há cinco dias atrás, a taxa directora tinha sido fixada em 10,5%. A subida hoje de madrugada é a sexta desde fevereiro e num só dia (650 pontos base) subiu mais do que desde fevereiro (500 pontos base) até 11 de dezembro. As reservas cambiais e de ouro emagreceram 18%, desde o final de 2013 até final de novembro de 2014, quase 91 mil milhões de dólares. O excedente na balança externa desceu de 26,8 mil milhões de dólares no 1.º trimestre do ano em curso para 11,4 mil milhões no 3.º trimestre. A governadora do banco central, Elvira Nubiullina, prevê que a fuga de capitais atinja 128 mil milhões de dólares no final deste ano e que o ritmo seja similar no próximo ano. Entretanto, o euro já disparou para mais de 90 rublos no mercado cambial, revelando a inefic+acia da medida tomada pelo banco central.
Mas o académico Constantin Gurdgiev não acha que oabalo no milagre económico russo vá provocar ondas de choque políticas internamente. O Kremlin dispõe de algumas almofadas e está a catalisar o apoio para uma projecção geopolítica no mundo e para o reviver de um nacionalismo económico.
«Na história e política russas, a economia fica sempre num lugar recuado do palco em relação às considerações internas e geopolíticas»
Estamos a assistir ao fim do milagre económico do Presidente Putin?
É prematuro falar já de consequências da crise económica.
Simplesmente porque na história e políticas russas, a economia fica sempre num lugar recuado do palco em relação às consequências internas e geopolíticas que romam a dianteira.
O espectro de estagnação não belisca o Kremlin?
O poder do presidente Putin está ancorado em três pilares: o domínio político, o domínio nacional e cultural, e, só no longo prazo, o crescimento económico. O grosso da base de apoio está baseado no actual quilíbrio de poder interno. A capacidade de Putin para controlar o poder interno é indiscutível, apesar da acumulação de algumas pressõpes vindas da atitude das elites. No entanto, essas elites não têm condições de desafiar a situação, porque qualquer alternativa signidicaria para elas um desantre total.
O outro pilar do poder de Putin é a geopolítica e o renascimento nacional do Estado russo.
A projecção geopolítica compensa o descalabro económico?
Depois de uma década e meia de humilhações reais ou sentidas como tal na arena geopolítrica global, a Rússia está a reafirmar a sua posição com uma potência global - e não meramente regional. Essa projecção está directamente ligada à liderança do presidente Putin. No passado, ao longo da história, os russos sempre mostraram uma quase ilimitada capacidade de sacrificar o bem-estar em prol dos ganhos de posição geopolítica e nacional.
As sanções e o petróleo não chegam para abalar essa atitude?
Nesta fase, a crise económica e as sanções não são suficientes para afectar essa propensão para melhorar a posição do país no contexto global, em detrimento de uma visão estritamente económica de curto prazo. As dores económicas não podem ser ignoradas, mas ainda são insuficientes para representar um desafio real.
Porquê?
Há dois factores adicionais que reforçam essa dinâmica.
Primeiro, na política russa, não há actualmrentre oposição viável ao regime actual. As alternativas que surgem a partir do estrangeiro - os reformistas apoiados pelo Ocidente - são em grande medida impopulares e até mesmo desprezadas na Rússia. Podem ter boas ideias, mas não têm nenhuma base de apoio no país. Mesmo no auge dos protestos após as eleições presidenciais de 2012, manifestava-semuito pouco apoio aos manifestantes dentro da corrente principal da sociedade russa. A classe média alta de profissionais, que apoiou alguns protestos, é pequena em dimensão e está ainda muito ligada ao status quo actual do sector de distribuição de energia.
Em segundo lugar, dentro das gerações mais jovens de russos, há uma profunda divisão entre um grupo pequeno de gente altamente qualificada a favor das reformas, e um grupo muito maior de jovens apoiantes de um poder forte, menos escolarizados e focados no nacionalismo. A retórica da projecção geopolítica e da consolidação política interna está inclusive a gerar uma nova alternativa económica - de patriotismo económico e de desenvolvimento de um sector de substituição de importações no mercado interno.
Definitivamente, o abanão na imagem de milagre económico russo é literalmente marginal?
Sim. O enfoque da estratégia de Putin afastou-se da apresentação de sucessos económicos para a consolidação do poder interno e do papel de grande potência na geopolítica.
Mas essa opção pela projecção geopolítica não está a afectar seriamente a economia russa?
A maior parte da pressão económica actual é decorrente de dois factores não relacionados com a geopolítica.
O primeiro é a desaceleração estrutural no crescimento que começou a sério no início de 2013, e que já se manifestava no final de 2011, como tenho acentuado.
O primeiro é a desaceleração estrutural no crescimento que começou a sério no início de 2013, e que já se manifestava no final de 2011, como tenho acentuado.
O segundo é o efeito da queda actual dos preços do petróleo.
Os dois factores estão interligados.
Em termos estruturais, a economia russa continua a estar excessivamente exposta às flutuações dos preços de energia. Os efeitos das sanções, por via das tensões geopolíticas, ainda são secundários fora da área dos problemas de liquidez do sistema bancário e da fuga de capitais.
«O enfoque da estratégia de Putin afastou-se da apresentação de sucessos económicos para a consolidação do poder interno e do papel de grande potência na geopolítica»
A economia russa arrisca-se a um período prolongado de estaglação, de estagnação com inflação nos dois dígitos?
Essa dinâmica está a ser alimentada pela opção russa de adopção de contrassanções em conjunto com a substituição de importações em resposta à segunda ronda de sanções ocidentais. Mas o efeito inflacionário das contrassanções deverá esgotar-se até ao final de 2015. O impacto da opção pela substituição de importações, juntamente com os efeitos da desvalorização do rublo nos preços internos, também vai começar a enfraquecer no segundo semestre do próximo ano. As causas da inflação elevada são temporárias, a meu ver.
E quanto ao crescimento?
Nesse campo, a situação é mais preocupante, e de natureza estrutural, como tenho sublinhado. Na ausência de uma recuperação robusta na economia mundial, vamos continuar a assistir a uma derrocada dos preços do petróleo. E essa dinâmica provoca não só falta de liquidez, mas também uma crise de crédito no longo prazo, o que terá um impacto sério no investimento interno. Ora, a opção pela subsituição de importações em resposta às sanções ocidentais, a extracção, e a renovação do capital fixo, tudo isso requer investimento massivo.
Esta falta vai ser o motor principal da estagnação de longo prazo. A modernização tecnológica já está a sofrer uma paragem abrupta e as importações de peças de reposição e de ferramentas necessárias estão em queda acentuada.
Mas a economia russa dispõe ainda de alguns amortecedores significativos ...
Sim. A Rússia detém ainda reservas cambiais consideráveis [com as reservas de outo somam ainda 418,9 mil milhões de dólares] e continua a gerar excedentes na balança externa [11,4 mil milhões de dólares no 3.º trimestre de 2014]. O problema é que as reservas estão a esgotar-se a um ritmo rápido em virtude das intervenções cambiais e do apoio aos bancos e às grandes empresas face aos problemas no mercado de financiamento internacional gerados pelas sanções. A Rússia tem actualmente reservas cambiais para 18 meses se descontarmos as amortizações de dívida pública a realizar e se tivermos em conta a própria natureza dessas reservas.Mas a fuga de capitais e a desvalorização do rublo face ao euro e ao dólar está a colocar uma pressão muito maior.
A meu ver, a Rússia tem amortecedores para suportar a pressão nos próximos nove a 12 meses. Para além disso, a situação começará a ser difícil de compensar. A Rússia precisa de investir e de alterar a sua dependência do petróleo e do gás. O que exigiria uma gestão muito conservadora das reservas cambiais.
O Banco Central da Rússia já subiu a taxa directora de juros seis vezes desde fevereiro, de 5,5% até 17% esta madrugada. Até onde pode ir a governadora Elvu«ira Nabiullina para reverter a brutal queda do rublo e a fuga de capitais?
Apolítica do Banco Central, até à data, tem sido muito problemática. Por um lado, a subida das taxas directoras de juros tem sido ineficaz para conter a fuga de capitais e sustentar uma valorização do rublo. A inflação não para de subir, para mais de 9% em novembro, devendo chegar a 10% ou mais em 2015. Uma taxa directora deveria regressar à volta de 5%. No entanto, isso implicaria uma maior inflação ainda, em torno dos 15% em 2015. A governadora Nubiullina está perante um dilema, como ela o tem reconhecido ultimamente. O truque é encontrar medidas que possam reorientar a fuga de capitais para o investimentodoméstico e que restrinjam as perdas de liquidez de divisas motivadas pelas amortizações da dívida externa. É difícil ver como isso pode ser feito sem um controlo directo de capitais.
«A Rússia tem amortecedores para suportar a pressãonos próximos nove a 12 meses. Precisa de investir e de alterar a sua dependência do petróleo e do gás»
Recentemente, o primeiro-ministro Dmitry Medvedev alertou que uma enorme desvalorização do rublo é um risco em "sentido estratégico". Face ao euro, o rublo já desvalorizou mais de 62%. O Banco Central diz que o rublo está desvalorizado excessivamente em 10 a 20 por cento. O que pode ser feito para travar esta queda do rublo?
Maiores taxas directoras de juros e intervenções nos mercados cambiais em defesa do rublo não estão a ser eficazes no combate à desvalorização, como se tem visto. Em princípio, para além dos alegados ataques especulativos contra a moeda russa, a dinâmica do rublo é sobretudo um reflexo da dinâmica dos preços do petróleo e da fuga de capitais. Num quadro destes, não vejo como se possa resolver o problema sem comtrolo de capitais. A chave vai ser o preço do petróleo. Se o preço voltar ao nível dos 80 dólares no primeiro semestre de 2015, será possível lidar com a situação sem controlo de capitais. Mas, se o preço permanecer abaixo dos 70 dólares por um período de tempo longo, esse controlo vai ser inevitável. O cdilema do rublo é o mesmo da política monetária, a que já me referi.
A guerra de preços desencadeada pela OPEP, em particulae pelos sauditas, é dirigida também à Rússia?
Não concordo com essa escola de pensamento que atrinui o actual colapso do preço do petróleo a uma conspiração anti-russa dentro da OPEP. A oferta no mercado petrolífero está a crescer o triplo da procura e isso impulsiona os preços do petróleo para baixo. A Arábia Saudita só tem uma escolha: ou opta por preços mais altos e há o risco de perder quota de mercado, ou mantem quotas. sustentadas e perde nas margens. O facto de escolher a segunda opção é lógico e racional, a meu ver. É claro que isso se faz em detrimento dos principais rivais: Brasil, Venezuela, que até é membro da OPEP, e Rússia. No meio disto, a resposta russa parece-me acertada e pró-activa: Moscovo está a alterar a geografia dos seus contratos de fornecimento de petróleo para o Oriente e o Sul, em direcção aos centros de crescimento do futuro. Mas, é claro, que essa viragem vai levar anos a dar frutos. E, neste meio tempo, a pressão é muito aguda e bem real.
O Kremlin vai avançar em 2015 com novas jogadas no plano geopolítico, no sentido de consolidar uma zona tampão, ou vai viver-se um clima de guerra fria na Europa?
A meu ver, a Rússia esta actualmente envolvida em três confrontos geopolíticos, um dos quais, a crise da Ucrânia, representa um importante ponto de geração de risco e de incerteza. Acho que a Rússia terá de mudar drasticamente o papel que desempenha na Ucrânia.
Em que sentido?
Vamos ser realistas. A posição russa no leste da Ucrânia não é propícia para a resolução pacífica da crise, para a restauração da integridade territorial da Ucrânia e para a recuperação do Estado ucraniano e da sua economia. Mas isso tem de mudar, de modo a neutralizar a crise. Eu suspeito que vamos ver alhuns movimentos significativos por parte da Rússia noi sentido de um distanciamento do conflito em 2015.
A Rússia vai abrandar a pressão em breve?
O calendário de tais movimentos é difícil de prever, mas eu não ficaria surpreso se a Rússia se virasse para um papel de reconsiliação no segundo trimestre de 2015 ou pouco depois. É claro que prevê-lo é arriscado. Há va´rios factores externos em jogo. Há, nomeadamente, a necessidade de que o Ocidente facilite esse movimento. Até agora há só cacetes em redor e não há cenouras. Devido aos problemas internos na União Europeia - economia estagnada e estratégias geopolíticas divergentes defendidas por vários estados-membros - é provável que haja progresso mais positivo da parte da Europa no final de 2015. Quanto aos Estados Unidos, creio que as relações se vão tornar mais tensas em 2015. Os EUA estão a aproximar-se de eleições presidenciais e a Casa Branca procura desesperadamente reposicionar-se em relação a um Congresso mais intransigente e dominado por falcões.
Resumindo, do ponto dde vista de uma perspectiva política racional, é pouco provável que haja uma aceleração de uma diplomacia arriscada por parte da Rússia. No entanto, como os acontecimentos de 2014 mostram, a racionalidade pode rapidamente transformar-se em opções reactivas e as estratégias de longo prazo podem ficar reféns de eventos de curto prazo.
«Não ficaria surpreso se a Rússia se virasse para um papel de reconciliação no segundo trimestre de 2015 ou poco depois»
A ideia de uma "casa comum europeia" falhou em definitivo? A presença da Rússia no grupo G8 está perdida para os próximos anos?
Eu acho que o amior vencedor da crise geopolítica deste ano na Europa Oriental foi a China. E o maior perdedor foi, de facto, essa ideia do "espaço comum europeu". E isso é verdadeiramente trágico.
A Europa precisa da Rússia como um parceiro forte, independente, mas cooperativo.
A Rússia precisa da Europa como um parceiro de investimento e comércio.
E o mundo em geral precisa da Rússia para participar de forma construtiva nas esferas geopolítica e económica globais.
Assim, a saída da Rússia do G7 [Alemanha, Canadá, EUA, França, Itália, Japão e Reino Unido, a que assiste também a União Europeia], bem como o declínio da cooperação russa com a NATO e o debilitamento dos laços económicos com a Europa são aspectos negativos.
O que os europeus poderiam fazer para obstar a esta cisão?
O problema é que a percepção ocidental aobre a posição russa na economia e na política mundial encurrala a Rússia numa mera posição de potência regional, tornando-a subserviente dos actores globais, como os EUA, a União Europeia, a NATO e até a China.
Essa visão de mundo prevaleceu nas décadas de 1990 e 2000, apesar de toda a retórica em contrário da parte de Berlim, Bruxelas e Washington. Esta visão do mundo vai ter que mudar.
O pensamento ocidental tem de reconhecer a importância da Rússia nas esferas política e económica mundiais e facilitar uma alternativa viável à actual situação.
Quanto mais cedo isto acontecer, mais cedo poderemos nos afastar de uma diplomacia arriscada e regressar à cooperação.
A presença dos BRICS na cena mundial e a crescente relevância política do G20 são suficientes para Kremlin encontrar espaço de manobra?
A dinâmica política do G20, muito evidente na última cimeira em Brisbane, na Austrália, alimenta um impasse geopolítico entre as economias desenvolvidas e os países emergentes e em desenvolvimento.
Enquanto no passado, a Rússia agiu como uma ponte entre as posições do G7 e o resto dos interesses do G20, hoje, Moscovo já não consegue facilitar esse diálogo.
O eixo dos BRICS tornou-se menos cooperativo com o Ocidente e mais conflituoso. Mas tem que se reconhecer uma realidade óbvia: em 2020, quatro das oito maiores economias do Mundo em comércio e PIB serão dos BRICS. A Rússia tem de desempenhar um papel cooperativo. O impasse actual não é sustentável no longo prazo - nem para Vladimir Putin, nem para o Ocidente.
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