Não é só a coragem que distingue Carlos Alexandre. Amigos e colegas reconhecem que o magistrado tem uma memória prodigiosa para nomes e contextos e uma capacidade invulgar de associar factos contidos em processos diferentes /José Carlos Carvalho
Micael Pereira e Ricardo Marques
14:13 Sábado, 22 de novembro de 2014No intervalo de poucos meses mandou deter o maior banqueiro do país, um diretor de polícia e um ex-primeiro ministro. Há muito que o juiz Carlos Alexandre mostrou que não se deixa intimidar pelo poder.
Tem sido um outono agitado no rés-do-chão de um dos edifícios envidraçados do Campus da Justiça, em Lisboa, onde funciona o Tribunal Central de Instrução Criminal. Carlos Alexandre, o único juiz do Ticão, como é conhecido o tribunal dedicado à instrução de grandes casos em Portugal, ainda não teve tempo para parar desde que mergulhou numa sucessão de interrogatórios, sem direito a fins de semana de descanso.
Primeiro, com a detenção e audição do presidente do Instituto de Registos e Notariado e do diretor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, mais uma dúzia de arguidos implicados no caso de corrupção e abuso de poder na atribuição de vistos Gold a estrangeiros. E agora, logo de seguida, com José Sócrates, ao validar a detenção do ex-primeiro-ministro em pleno aeroporto, esta sexta-feira à noite, quando regressava a Lisboa vindo de Paris.
Carlos Alexandre é o juiz de quem mais se fala no país há vários anos. De uma forma ou de outra, tem estado sempre nas notícias. Se bem que o seu nome seja incontornável por se tratar do único magistrado a desempenhar funções no Ticão - o que significa que é ele sempre a decidir tudo sozinho - também é verdade que o seu temperamento intrépido o distingue de muitos outros juízes.
Os procuradores gostam dele. Os advogados não. E isso é assim desde que foi, em 2006, para o Ticão. Uma fonte do Ministério Público admitia, num artigo de perfil publicado pelo Expresso em 2009, que não é comum um juiz de instrução criminal participar tão ativamente num interrogatório em fase de inquérito, uma vez que esse é o papel dos procuradores. Mas onde uns veem virtude, outros só encontram defeitos. "Ele é um excelente procurador", garantia um advogado que já o enfrentou várias vezes. "E por isso não pode ser um bom juiz. Não é parcial."
A missão de um juiz de instrução criminal, como é o seu caso, passa por garantir que os direitos dos arguidos são respeitados. Por isso, todos os métodos judiciais que possam interferir com a privacidade ou assuntos da esfera pessoal de quem está a ser investigado têm de ser validados por ele. Escutas, buscas, acesso a contas bancárias. As medidas de coação também: proibição de falar com outras pessoas, pulseira eletrónica, prisão preventiva. E, depois disso, cabe ainda ao juiz liderar as fases de instrução, decidindo se os casos seguem para julgamento sempre que os arguidos são acusados pelo Ministério Público e recorrem da acusação.
Uma dose de show-off?
Algumas diligências validadas por Carlos Alexandre têm levantado polémica. A mais recente foi a detenção de Ricardo Salgado, o ex-presidente do Banco Espírito Santo, que a polícia foi buscar a casa, em Cascais, a 24 de julho, para ser levado para interrogatório. Haveria risco de fuga que justificasse uma medida dessas? Ouvido nesse dia como arguido num processo-crime sobre a venda não concretizada da Escom pelo Grupo Espírito Santo a capitais angolanos, Salgado voltaria para casa pelo seu próprio pé.
Há quem critique esta espécie de exibicionismo, como se a Justiça tivesse necessidade de demonstrar que consegue ter mão dura quando se trata de lidar com figuras da política ou da alta finança.
Em 2011, uma das imagens que marcaram o ano judicial foi a chegada, em direto para as televisões, do juiz ao prédio onde vive Duarte Lima, o antigo presidente da banca parlamentar do PSD, para controlar uma operação de buscas a sua casa. O ex-político acabaria por ser levado para interrogatório e ficaria nesse mesmo dia em prisão preventiva nas instalações anexas à sede da Polícia Judiciária.
As várias buscas que, ao longo dos anos, foram conduzidas pelo juiz em grandes escritórios de advocacia, entre eles a sociedade Sérvulo Correia e a sociedade Vieira de Almeida, com ligações estreitas ao Estado e a grandes corporações, causaram indignação na Ordem dos Advogados. Como poderia estar assim salvaguardado o sigilo profissional que protege a relação com os seus clientes?
Todos concordam que Carlos Alexandre não é um juiz comum. "Quanto mais poderosas são as pessoas visadas, mais firmeza e segurança ele parece ter nas decisões que toma", diz um dos magistrados que costuma lidar com ele.
Mas não é só a coragem que o distingue. Amigos e colegas reconhecem que o magistrado do Ticão tem uma memória prodigiosa para nomes e contextos e uma capacidade invulgar de associar factos contidos em processos diferentes - sobretudo quando estão em causa casos complexos que envolvem diretamente os alicerces do regime, implicando os partidos do poder e em que é, na verdade, uma das únicas pessoas com conhecimento profundo de todos eles.
O terceiro juiz até hoje a ocupar o lugar no Ticão conseguiu, além disso, tornar-se a cabeça de um corpo coeso e empenhado de funcionários. "A estrutura já existia, mas há sempre marcas pessoais que cada magistrado traz consigo", dizia um dos 13 elementos da sua equipa para o perfil publicado no Expresso. "É uma pessoa muito exigente, que acompanha de muito perto todos os passos do trabalho e que, de certo modo, dá o exemplo." O juiz faz questão de conhecer todos os prazos e diligências dos processos, de ler tudo o que pode e de, a todo o momento, saber quanto trabalho tem e quanto irá ter nos dias seguintes. Não deixa nada ao acaso. Mas até para isso parece ter um talento especial: motivar os funcionários, que já estão habituados a apresentarem-se ao serviço a qualquer hora e pelo tempo que for preciso - seja final da noite, final da semana ou final de ano. Como aconteceu em 2007, quando o juiz e dois funcionários sairam do tribunal já depois das 23 horas de 31 de dezembro. "Só fui a tempo de abrir a garrafa de champanhe", recordava um deles.
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